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A longa travessia da Praça dos Três Poderes

Por Daniel Rittner

Entre brindes e promessas de parceria, visitas de líderes estrangeiros ao Brasil ou de presidentes brasileiros ao exterior costumam terminar com a pomposa assinatura de acordos, mas o destino final de dezenas de tratados internacionais tem sido simplesmente as gavetas do Palácio do Planalto. Quem dera a impaciência de Dilma Rousseff com o mise-en-scène da diplomacia ficasse apenas em reprimendas nos funcionários do Itamaraty e enfado nas cúpulas com chefes de Estado: até o fim de outubro, dormiam no gabinete presidencial nada menos que 318 atos bilaterais e multilaterais já aprovados pelo Congresso Nacional, mas pendentes de promulgação.

Como em qualquer regime com os devidos freios e contrapesos, tratados internacionais precisam do crivo legislativo. Depois, voltam ao Poder Executivo, que dá a palavra final. Sem esse último passo, os acordos não podem ser incorporados plenamente às normas jurídicas brasileiras.

O senso comum indica que quase tudo emperra na Câmara dos Deputados ou no Senado. “É uma falácia”, conclui a consultora legislativa Maria Ester Mena Barreto Camino, responsável por um minucioso levantamento sobre o assunto. Ela teve o trabalho de contar, um por um, todos os acordos firmados pelo Brasil desde 1988 encaminhados para análise dos parlamentares. Foram 1.281 atos internacionais – 96% dos quais já esgotaram sua tramitação. Quase um quarto de tudo o que foi aprovado parou do outro lado da rua.

Mais de 300 acordos internacionais à espera de sanção

A poeira que se acumula nos escaninhos do Planalto atinge convênios para evitar a dupla tributação de empresas, permitir a criação de voos regulares de companhias aéreas, isentar turistas de vistos e até extraditar presos. Nada de filigranas diplomáticas. Até um acordo de preferências comerciais com um bloco de cinco países africanos – África do Sul, Botsuana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia -, com desconto nas tarifas de importação para mais de mil produtos brasileiros, está na lista de pendências. É um mercado pequeno, incapaz de mudar os rumos da balança comercial, mas que compra carnes e autopeças do Brasil. Não deve ser desprezado.

Sobram lendas para justificar a inexplicável paralisia. Uma delas é que Dilma sempre exige mais tempo para ler com calma, na residência oficial, cada vírgula dos acordos pendentes de sua assinatura. Como são penosos demais, adia a leitura e nunca os devolve. Sabe-se do repúdio que ela própria tem por quem firma documentos sem analisá-los nos detalhes, mas eis um exemplo de como o excesso de centralismo gerencial e a desconfiança no trabalho dos assessores retarda o andamento da máquina. Verdade ou não, a lenda prolifera porque o fato existe.

Logo depois das eleições, inspirados pelo chamado ao diálogo, empresários da Confederação Nacional da Indústria (CNI) levaram ao chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, um pedido de agilidade na entrada em vigência desses acordos. “Não faz sentido deixá-los há tanto tempo guardados na gaveta”, afirma o diretor de desenvolvimento industrial da CNI, Carlos Abijaodi. Há acordos para evitar a bitributação com a Rússia e na área de previdência social com a Bélgica que só esperam o carimbo da presidente. No contexto de internacionalização das empresas brasileiras, que gastam fortunas para montar subsidiárias ou escritórios no exterior, trata-se da oportunidade de driblar custos fiscais e trabalhistas relevantes para as novas multinacionais verde-amarelas.

Pior e injustificável é a quantidade de tratados que nem sequer cruzaram a porta de saída do Planalto para entrar no Congresso. O volume exato é pouco conhecido, mas uma mostra do estoque foi vista no mês passado – e cabe um elogio à presidente por ter vencido o imobilismo. Às vésperas da última ida do chanceler Luiz Alberto Figueiredo à Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, no dia 19 de novembro, mais de 30 acordos fizeram a travessia da Praça dos Três Poderes. Quando o malote chegou, os assessores se espantaram: havia até documentos assinados, quase um século atrás, em pleno governo Washington Luís.

Em 1928, o Brasil assinou a resolução que dava origem ao Instituto Panamericano de Geografia e História, uma espécie de confederação dos “IBGEs” da América Latina, com sede na Cidade do México. O governo brasileiro já participa normalmente das atividades do instituto e nunca deixou de contribuir financeiramente, com recursos orçamentários, mas só agora percebeu que vinha fazendo isso sem jamais ter aprovado internamente o ato de sua criação.

A boa notícia de verdade fica por conta da adesão do Brasil ao acordo multilateral que simplifica a legalização de documentos públicos emitidos no exterior. A Convenção da Apostila de Haia, firmada em 1961, facilita a vida de cidadãos e de empresas. Quem precisa regularizar um diploma de universidade estrangeira se submete hoje a uma via-crúcis desnecessária. Multinacionais americanas e europeias que participam de licitações públicas no Brasil perdem tempo e dinheiro com traduções e procedimentos cartoriais. Aderindo à convenção, elimina-se boa parte da parafernália burocrática, desde que não se espere mais cinco décadas por uma assinatura presidencial.

Nos últimos dois anos, o governo rodou o mundo atrás de interessados no programa de concessões de ferrovias, mas sempre esbarrou na desconfiança de investidores com o modelo que tem como base a garantia de compra da capacidade de transporte pela estatal Valec. Ironicamente, surgiu agora, em meio ao furacão de denúncias contra as maiores empreiteiras do país, um interessado firme nas concessões. A OHL já avisou ao governo que, se o leilão da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico) finalmente for marcado, garante presença no certame. Trata-se da gigante espanhola que arrematou cinco concessões de rodovias federais no governo Lula, com pedágio a R$ 1, e vendeu seus ativos no Brasil sem ter feito a maioria das obras com que se comprometeu.

Daniel Rittner é repórter especial. Hoje, excepcionalmente, deixamos de publicar a coluna de Cristiano Romero