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Assédio moral assombra a LG

Greve no interior paulista mostra as dificuldades dos funcionários da empresa em conviver com o jeito coreano

Paula Pacheco

TAUBATÉ (SP)

Por quase uma semana, os funcionários da coreana LG Eletronics de Taubaté em torno de 2,4 mil interromperam a produção de cerca de 300 mil unidades com o objetivo de brigar pelo cumprimento de um acordo de promoções e para protestar contra o assédio moral por parte de alguns executivos. A greve terminou na sexta-feira, depois de um acordo entre o Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté e a empresa, intermediado pelo Tribunal Regional do Trabalho de Campinas (SP).

O fim do assédio moral é um tipo de reivindicação comum nas pautas sindicais, mas o excesso de queixas, segundo o sindicato, mobilizou os funcionários. A empresa, segundo a entidade, se comprometeu a mudar suas práticas. Os trabalhadores falam de insultos, palavrões e maus tratos.

Depois de um tapa nas costas e um rosário de insultos, Simone de Gouvêa Rosa, de 35 anos, recorreu à Justiça. Desde junho de 2007 briga por uma indenização. A acusação é de agressão moral e física. O acusado, diretor da área de celulares, é conhecido por todos como Mister Ahn. Em caso de condenação da empresa, o valor será determinado pelo juiz.

Após um acordo, ficou acertado que, até a decisão do juiz, Simone continua vinculada à empresa. É funcionária, recebe o salário e demais benefícios, mas fica em casa. Não pode procurar emprego nem ter atividade remunerada. Depois de tanto tempo, ainda tem de conviver com as perguntas inconvenientes de quem quer saber por que levou um tapa do diretor coreano. Até o filho único, de 13 anos, é atormentado pela curiosidade dos colegas de escola.

Simone entrou na LG em 2001. Acordava às 5 da manhã, ainda com o céu escuro, preparava o filho para a escola e chegava à fábrica às 7h15. O expediente terminava às 17h18. Parava10 minutos para o café da manhã, tinha pausa para o almoço e outra para o lanche da tarde. Mas, segundo ela, precisava pedir para ir ao banheiro ou tomar água. “Se ninguém estivesse livre para me substituir, tinha de segurar a vontade”, diz. Seu trabalho era testar baterias e colar adesivos nos aparelhos.

Em junho de 2007, quando a produção de monitores estava mais tranquila e a de celulares acelerada, alguns funcionários, entre eles Simone, foram recrutados para mudar de departamento por uma semana. O grupo teve de aguardar em uma sala para receber mais instruções para a hora extra que faria. Ela conversava com Adriano Calais, então integrante da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa), para ter detalhes sobre como seria a Participação de Lucros e Resultados (PLR). Mr. Ahn, segundo ela, entrou na sala, deu um tapa estalado nas costas dela e gritou em coreano.

Abalada, a funcionária diz que passou por um psiquiatra e uma psicóloga e teve de tratar da depressão com muitos remédios. “Tomava calmantes, não conseguia dormir. Naquela época não conseguia sair de casa, nem tirava o pijama, ficava enfiada no quarto o dia inteiro à base de antidepressivos.”

Ainda hoje Simone se desestabiliza ao lembrar do caso. Chora e diz ter pesadelos. “Ele olhava nos meus olhos, gritava comigo, gesticulava muito. Fiquei paralisada, me senti assustada e não consegui reagir”, diz.

O marido fez o possível para ajudar na recuperação. Numa saída para jantar, ela simplesmente travou ao passar pela porta do restaurante e ver uma mesa cheia de coreanos da LG, entre eles Mister Ahn.

Desgastada, Simone espera encerrar o processo e, pouco a pouco, “voltar à rotina, arranjar outro emprego, ter a minha independência novamente e uma vida social”.

PALAVRÃO

João, nome fictício, é funcionário da LG há nove anos. Relata que a relação com os chefes coreanos é difícil. Ele diz que uma das primeiras coisas que os novatos costumam fazer, até por instinto de defesa, é aprender palavrões em coreano para tentar acompanhar o que os executivos dizem nas rodinhas de conversa.

Em março do ano passado, João ajudava o supervisor em outra linha de produção. Conta que Mister Ahn, aparentemente insatisfeito com a presença do funcionário, o xingou no idioma natal. “F.d.p.”, teria dito. “Respondi que sabia o que ele estava falando e disse “é a sua mãe”, pronto para bater nele. Chorei de raiva. Pensei na minha mãe que me colocou no mundo. Ela é o quê, uma vadia?”

João foi ao ambulatório da empresa, tomou um calmante e pediu providências. Mister Ahn teve de pedir desculpas formais. Ele tentou entrar com uma ação na Justiça, mas teve de interromper o processo por falta de testemunhas. “Será que ele é bipolar? Na semana passada dizem que ele jogou um notebook no chão num momento de fúria.” A empresa nega.

A LG informou, em nota, não existir uma cultura dominante na empresa: “O objetivo é fazer com que a cultura local e a coreana se integrem, transformando a forma de trabalhar, conviver e interagir em um misto das duas culturas, na qual o que prevalece é o melhor de cada uma.”

Dos cinco mil funcionários no País, 64 são coreanos, espalhados por Taubaté, Manaus e o escritório de São Paulo. Sobre a acusação de assédio moral, a LG diz que as queixas podem ser feitas à matriz. “Caso seja apurada uma infração, as providências são imediatamente tomadas pela matriz, que acionará os responsáveis no País”, explica a nota.

Para Roberto, outro nome fictício, a cultura coreana é muito diferente da nossa. “Para eles, é normal chamar a atenção de um funcionário na frente dos outros ou simplesmente não falar com os subordinados. Mas não é assim que agimos”, ressalva. Ele também viu cenas inusitadas na LG. A máquina que fechava as caixas de monitores estava com um defeito e não fazia o lacre corretamente. Um diretor coreano chamou a equipe para uma reunião e arremessou uma caixa com o monitor no chão. “Tranquilo, ele saiu para fumar com os outros coreanos como se nada tivesse acontecido”, afirma.

Para Roberto, estar na LG é um “desgaste psicológico”. Se pudesse, mudaria de emprego. “Quando fui admitido, imaginava que seria o lugar do futuro. Afinal, lá se faz tecnologia.”

Colaborou Marcelo Rehder

´Coreano primeiro trabalha. Depois vive´

Pesquisador explica a influência cultural nas relações de trabalho no país

Paula Pacheco

A tradição de obediência hierárquica no mundo corporativo coreano tem clara influência da filosofia de Confúcio, que legitimava a submissão aos superiores. Essa relação começou a ficar clara com a migração mais acentuada da população rural para as cidades, entre os anos 40 e 50, e prevalece até hoje. Aquela era uma população mais acostumada ao trabalho pesado e sem a presença de figuras como a dos sindicatos.

O país passou por uma série de evoluções e suas grandes empresas, como LG, Hyundai e Samsung, se globalizaram. Passadas algumas décadas, o choque cultural persiste, diz o especialista em Coreia do Sul, Gilmar Masiero, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e doutor em economia. “Os coreanos têm assimilado normas de conduta internacionais, mas há resíduos das relações de trabalho do país”, diz.

Masiero explica: “Aqui o brasileiro vive e trabalha. Na Coreia a prioridade é outra. O coreano primeiro trabalha, depois vive”. Mesmo com a atual renda per capita, o emprego no país ainda é muito disputado. E há convenções sociais que condenam os desempregados.

Até pouco tempo atrás, segundo o professor, a jornada de trabalho dos coreanos chegava a 60 horas semanais. Hoje, oficialmente, é de cerca de 48 horas. Mas se trabalha muito mais do que isso graças às prolongadas horas extras.

Em suas pesquisas e visitas ao país, Masiero comprovou que, de fato, segundo a cultura coreana, é normal que chefes se expressem aos gritos com os subordinados. Em situações extremas, como manifestações grevistas, o coreano pode chegar ao confronto físico. “As relações são mais duras”, resume. O professor avalia que algum tipo de choque cultural sempre vai existir, mas argumenta que isso tem a ver com o baixo nível de compreensão dos nativos.

“O brasileiro não entende o coreano e seus padrões, diferentes dos vistos no Ocidente. E é bom lembrar que enquanto eles gritam com os funcionários, o Brasil também vive situações inadmissíveis, como os casos de trabalho escravo”, salienta. Além disso, diz, alguns empregadores brasileiros têm um comportamento semelhante ao coreano ao tratar os empregados aos gritos e submetê-los a todo tipo de assédio moral.

COMENTÁRIOS
08/02/2010, Virgílio Silva Chevalier

Discordo que haja o baixo nível de compreensão dos nativos e que não se entenda o coreano e seus padrões. Eles têm que perceber a diferença entre as culturas. Ademais, se alguns empregadores brasileiros têm um comportamento semelhante ao coreano ao tratar…