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Como os contratos intermitentes devem afetar o mercado de trabalho

Quem faz ‘bico’ vai ser oficializado no mercado? Ou quem tem vaga formal fixa vai ser substituído? O ‘Nexo’ entrevistou dois analistas com visões distintas sobre o tema 

Por Paulo Flores/nexo 

A reforma trabalhista aprovada pelo governo Michel Temer e que entrou em vigor em 11 de novembro criou a modalidade de trabalho intermitente. Por essa categoria, o funcionário recebe por hora trabalhada e, caso o salário mensal seja inferior ao salário ao mínimo (R$ 937), em razão de poucos dias trabalhados, o empregado terá que complementar a contribuição ao INSS do próprio bolso.

A determinação foi feita pela Receita Federal em 24 de novembro. Isso porque o INSS desconsidera contribuições abaixo de R$ 187,40 (equivalente a 20% do salário mínimo). Como a reforma do governo não especificou qual procedimento deveria ser adotado por trabalhadores que, eventualmente, recebessem menos que um salário mínimo por mês, a Receita estipulou a regra.

Como é a regra :
Trabalhadores com contrato intermitente que receberem menos de um salário mínimo por mês deverão pagar, à Previdência, o equivalente a 8% da diferença entre o salário recebido e o salário mínimo.

EXEMPLO:
Salário mínimo: R$ 937
Salário recebido: R$ 300
Diferença: R$ 637
Valor a ser pago do bolso: R$ 50,96 (8% de R$ 637)

Caso o trabalhador não complemente a contribuição, o mês trabalhado não entra no cálculo para aposentadoria e ele também não terá direito a benefícios previdenciários em caso de necessidade – como auxílio saúde e acidente.

Como funciona o trabalho intermitente:
Os contratos permitem que o trabalhador preste serviços esporádicos a um empregador e recebam de acordo com a quantidade de horas trabalhadas. O valor pago por cada hora de trabalho é negociado diretamente entre funcionário e empregador e não pode ser inferior ao salário mínimo (R$ 4,26) ou ao piso da categoria, quando houver.

Alguns direitos adicionais, previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e na Constituição, também valem para contratos intermitentes. Entre eles estão:
– férias e 13º salário proporcionais ao total de horas trabalhadas

– um dia de descanso semanal remunerado

– jornada semanal de, no máximo, 44 horas

A empresa tem de convocar o trabalhador para prestar o serviço com, no mínimo, três dias de antecedência. Não há quantidade mínima de horas que a empresa é obrigada a pagar ao funcionário. Assim, se o empregador não convocar o funcionário nenhum dia do mês, ele não recebe nada de salário.

Por essa razão, os trabalhadores podem firmar contratos de trabalho intermitente com diversas empresas ao mesmo tempo e distribuir a prestação de serviços entre elas de acordo com a demanda.

A defesa do modelo:

O governo e associações de empresários defendem que contratos intermitentes trazem vantagem tanto para empregadores quanto para empregados.

Pelo lado do trabalhador, a categoria intermitente permite a formalização e garantia de direitos de pessoas que, antes, se sustentam apenas com “bicos”.

Com o registro dos contratos, o trabalhador que sofrer um acidente de trabalho ou ficar doente terá direito a auxílio previdenciário proporcional às suas contribuições ao INSS, desde que a contribuição previdenciária seja integralmente realizada.

Com relação às empresas, argumenta o governo, será possível administrar melhor a demanda por mão-de-obra. Se uma companhia atua em um segmento com alta demanda aos finais de semana, como bares, o empregador poderá convocar trabalhadores intermitentes apenas para esses dias específicos.

As críticas ao modelo:

Representantes de trabalhadores alegam que a modalidade de trabalho intermitente viola direitos básicos dos empregados.

Um deles é o direito a um salário mínimo. Ainda que o trabalhador tenha direito ao valor correspondente ao salário mínimo por hora, de R$ 4,26, a falta de garantia de que ele será convocado para trabalhar durante todo o mês pode resultar em salários muito baixos.

Outro problema é a cobrança de contribuição mínima ao INSS. Caso o salário do trabalhador seja inferior ao mínimo, ele terá que complementar uma parcela da contribuição ao INSS do próprio bolso.

De acordo com regra estipulada pela Receita Federal, o complemento deve ser equivalente a 8% da diferença entre o salário recebido e o salário mínimo. Se o total de horas trabalhadas for muito pequeno, é possível que o trabalhador acabe pagando mais em contribuição ao INSS do que recebeu de salário do seu empregador.

A leitura de dois especialistas:

Para saber qual o impacto que o trabalho intermitente pode ter no mercado, o Nexo conversou com dois especialistas na área. São eles:

Fausto Augusto Junior, coordenador do Dieese

Thiago Xavier, consultor da Tendências

O contrato intermitente pode facilitar a recolocação de desempregados no mercado formal de trabalho?

FAUSTO AUGUSTO JUNIOR Não. O que nós estamos vislumbrando é uma substituição de trabalhadores que já ocupam postos com carteira assinada por contratos intermitentes. E, pelo chamado das próprias empresas, já dá para ter ideia de onde isso deve ocorrer, que é o setor de comércio.

Historicamente, todos os anos se fala da contratação de trabalhadores temporários para o comércio. Agora, já é possível ver empresas que contratavam pelo modelo temporário [contrato específico com duração máxima de 180 dias que não caracteriza vínculo empregatício] migrando para o modelo intermitente.

O que deve ocorrer é uma substituição de trabalhadores de vagas temporárias para intermitentes. Quando o sistema começar a incorporar esse tipo de contrato, vai ser possível observar como outros setores vão se comportar.

THIAGO XAVIER As jornadas de trabalho parcial são bem pouco representativas no Brasil, uma vez que 85% dos postos formais são de jornada integral. Esse número é consistente com análises que indicam que era mais complicado contratar pessoas com jornadas parciais, por conta da legislação anterior à reforma trabalhista.

Como os contratos intermitentes flexibilizam a jornada de trabalho, existe o potencial de que trabalhadores informais sejam incluídos no mercado formal. Uma questão é sob quais condições essa incorporação ocorrerá, mas ainda não há dados suficientes para que a gente faça essa análise de forma clara.

O pagamento de salário mínimo por hora, e não por mês, viola a Constituição, como dizem alguns sindicatos?

FAUSTO AUGUSTO JUNIOR A princípio, não. A expectativa é de que as empresas paguem o salário mínimo por hora e, assim, não deve haver nenhum problema legal [a lei especifica o salário mínimo como correspondente a R$ 937 por mês, R$31,23 por dia e R$4,26 por hora].

O salário de muitas vagas já está até sendo divulgado com base no salário mínimo por hora. Mas esse debate não vai ocorrer de uma forma tão simples, porque uma das questões que deve surgir é: até que ponto a remuneração mínima deve ser paga por hora ou por mês. Esse debate ainda deve ser longo.

THIAGO XAVIER Olha, essa é uma questão muito difícil e vinculada à área do direito. No caso do trabalho intermitente, a princípio o piso do salário mínimo está sendo considerado como piso do salário-hora. Ou seja, o que deve valer daqui pra frente é qual valor do salário mínimo por hora trabalhada também, e não só por mês. Mas essa é uma questão que precisa ser analisada com mais cuidado por especialistas da área de direito trabalhista.

Trabalhadores terão que complementar a contribuição ao INSS quando o salário for menor do que o mínimo. Qual as possíveis consequências dessa regra?

FAUSTO AUGUSTO JUNIOR  Antes de tudo, acredito que a Previdência precisa resolver um problema. O trabalhador vai saber de fato quanto ele precisa pagar para complementar a contribuição? Nós estamos falando de um mundo [contabilidade previdenciária] que não é muito simples. A questão não é só ter o dinheiro, é questão de saber como o sistema funciona. O trabalhador precisa saber que deve pagar, como faz para pagar e o valor que ele vai pagar.

Então, imagina todo mês ele recebendo um holerite que está escrito que o empregador pagou R$ 30 ao INSS, por exemplo. Ele vai ter que fazer uma conta para descobrir quanto a mais precisa ser pago para que contribuição dele seja considerada “cheia”, e muitas vezes ele não sabe. Agora, objetivamente, eu acho que essas contribuições não serão feitas.

THIAGO XAVIER De fato, pode ser que um trabalhador, pela quantidade de horas trabalhadas, não alcance o valor do salário mínimo mensal. Nesse caso, ele pagaria 8% da diferença entre o salário recebido e o salário mínimo mensal.

O que existe de parâmetro sobre pagamento de INSS é a parcela de trabalhadores autônomos que já contribuíram para a Previdência. Entre abril e junho de 2017, havia 22 milhões de trabalhadores autônomos. Destes, 70% não contribuía para o INSS. Há casos, então, de parcelas grandes de trabalhadores que não pagam a Previdência quando esse custo pesa no bolso deles.

A ressalva, que pode fazer a diferença, é que os trabalhadores intermitentes vão pagar uma parcela da contribuição ao INSS menor. Já quem trabalha por conta própria paga o valor integral da contribuição.