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Empresas buscam mão de obra haitiana em SP

Há pouco mais de um mês a pequena sala no primeiro andar do anexo da Igreja da Paz, na região central de São Paulo, amanhece cheia de empresários e gerentes de RH.

Desde que haitianos vindos do Acre passaram a chegar diariamente a São Paulo, a Missão Paz realiza, às terças, quartas e quintas, uma intermediação entre os interessados em contratar os imigrantes e aqueles que já conseguiram a carteira de trabalho.

Esse processo, que deve ser assumido pelo poder público nos próximos meses, é dividido em duas etapas. O período da manhã é reservado à palestra de duas horas dada pela assistente social Ana Paula Caffeu. A partir das 13h30 começam as entrevistas com as empresas.

No dia 14 do mês passado, uma quarta-feira, a sala da missão reunía pela manhã 50 pessoas, 37 empresas. Uma pousada do bairro paulistano da Vila Mariana, uma fábrica de pães de Salvador, um hotel no interior de Minas, uma clínica veterinária de Suzano (SP), uma fábrica de cerâmica, outra de baterias e um frigorífico, todos de Santa Catarina. Duas senhoras procuravam um caseiro para o sítio.

“Quantos você quer levar?”, perguntavam-se entre si enquanto a assistente social não chegava. “Eu já tenho quatro e vim buscar mais dez”, diz o dono da fábrica de cerâmica catarinense. “Aquele ali, do frigorífico, tem 170”, completa. “Eu vim ontem e não consegui entrar, muito lotado”, emenda o veterinário de Suzano. Juntos, eles tinham 200 vagas para preencher. Os salários, entre R$ 800 e R$ 1,2 mil, eram semelhantes aos que se pagam aos funcionários brasileiros, mas a grande maioria se queixava por não conseguir encontrar mão de obra local.

A palestra de duas horas da assistente social inclui um perfil dos haitianos que estão com a missão. São homens em sua maioria, com idade média entre 18 e 26 anos. Muitos têm ensino superior completo e falam duas ou três línguas – além do creole e do francês do Haiti, inglês, espanhol e, para os que estão aqui há mais tempo, português.

Grande parte espera conseguir juntar dinheiro para trazer a família e conseguir fixar residência no Brasil, país com o qual muitos têm uma “relação afetiva”. Eles costumam recusar as vagas com salários inferiores a R$ 1 mil líquidos por mês, já que mais da metade do que recebem é enviado aos que ficaram no Caribe.

Antes da chegada dos primeiros ônibus vindos de Brasileia, no Acre, já estavam em São Paulo cerca de 3,5 mil e 4 mil haitianos, afirma o padre Paolo Parise, um dos membros da Missão Paz. Segundo ele, a Secretaria de Direitos Humanos do Acre telefonou para a paróquia no início de abril pedindo ajuda para encaminhar alguns imigrantes haitianos, que viajavam em direção ao Sul do país, do terminal rodoviário da Barra Funda para o terminal do Tietê. “Mas a grande maioria só tinha a passagem até São Paulo e não tinha dinheiro para seguir viagem. Não sabíamos que eles ficariam aqui”, afirma o padre.

Nos dias seguintes a missão recebeu visitas do prefeito, do governador, de senadores. Os imigrantes foram encaminhados para um albergue da prefeitura, voltaram – “alguns foram roubados, outros reclamaram das condições de limpeza “, conta Parise – e finalmente direcionados para um abrigo com 120 camas, improvisado pela prefeitura em frente à igreja, na rua do Glicério.

“A rotatividade é alta”, diz o coordenador de políticas para imigrantes de São Paulo, Paulo Illes. “Muita gente chega e alguns dias depois já vai embora para outro Estado, porque foi contratado.” Segundo Illes, a prefeitura procura um espaço na região central para montar um albergue permanente com capacidade para 200 pessoas. A estrutura será alugada e montada em parceria com o governo federal, por intermédio dos ministérios da Justiça e do Desenvolvimento Social. O albergue provisório vai funcionar até o começo de agosto.

No começo da tarde, o primeiro andar do anexo da Igreja da Paz volta a ficar lotado. Os haitianos se distribuem entre as cadeiras e esperam que as empresas venham anunciar suas vagas. Eles estão bem vestidos, alguns entram com os fones de ouvido apoiados no pescoço, falando ao celular. As primeiras a falar são as senhoras que procuravam por um caseiro. “Pago um salário mínimo, mas quem quiser pode trazer a família e vender para o mercadinho o que plantar”. Ninguém se manifesta.

Quando as propostas com remuneração mais alta começam a aparecer, os interessados levantam a mão e as entrevistas acontecem separadamente, em pequenos grupos. Leopaul Pierre, de 26 anos, é um dos haitianos que trabalham como voluntários nesses encontros, agindo muitas vezes como intérpretes.

Antes de conversar com a reportagem, ele explicava a um colega, com a ajuda do celular com acesso à internet, o trajeto entre o centro e o bairro da Penha (zona leste da cidade), onde havia uma vaga de ajudante em uma cozinha industrial. Em São Paulo há oito meses, Pierre, que é agrônomo, está desempregado. Sobre a experiência no Brasil, ele repete que “é duro, é duro”. Conta que os que já estão no Brasil tentam avisar aos amigos no Haiti que não é tão fácil ganhar dinheiro aqui. “Eles pensam que é mentira. Veem as notícias e acham que o país está rico”.

O especialista em imigração Duval Magalhães, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), lembra que muitos haitianos pagam entre US$ 2 mil e US$ 3 mil a “coiotes” para chegar ao país e são “ludibriados por promessas que não se concretizam”. O alto nível de qualificação de boa parte desses imigrantes, de acordo com o demógrafo, é uma das consequências dessa dinâmica. “Geralmente são pessoas que tiveram como pagar pela educação.”

Claudin Ilfrene, um professor de filosofia de 20 anos, que também espera uma oferta de emprego, está há seis meses no país e se queixa de ter encontrado “muita gente ruim”. No último dos três empregos que teve, na construção civil, só recebeu metade do que tinha sido prometido pelo empregador – episódio rotineiro entre os imigrantes, afirma a assistente social. Um salário “ideal”, para Ilfrene, deveria render R$ 1,1 mil líquidos por mês. “R$ 600 iriam para o Haiti, R$ 300 para o aluguel e o restante para sobreviver”.

Das 200 vagas oferecidas naquele dia na igreja, cerca de 60 foram preenchidas, a média das semanas anteriores. Adelar Muller, gerente de recursos humanos da Pamplona Alimentos, de Santa Catarina, foi duas vezes a Brasileia para contratar os 170 haitianos que hoje trabalham nos frigoríficos da empresa, que tem 1,8 mil funcionários. “Eles trabalham bem, são simpáticos e bem dispostos. Alguns já vão conseguir trazer as famílias no fim deste ano”, disse, durante a manhã, aos empresários que ainda não tinham contato com a mão de obra haitiana.

Dos outros 30 que ele planejava recrutar em São Paulo, porém, não contratou nenhum. Para ele, os refugiados agora podem “escolher mais” o trabalho. “Mas isso é um problema bom”, diz. Em Brasileia, “ninguém tinha opção”. “Eram mais de 2 mil pessoas confinadas em um mesmo espaço, em péssimas condições de higiene”, afirma. Para Muller, São Paulo parece estar sendo uma cidade mais acolhedora, onde os haitianos conseguem ter uma vida um pouco melhor.