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Justiça tardia, porém não negada

Tribunal Interamericano anulou anistias concedidas na região.

Ruti Teitel

No fim do ano passado, o ex-ditador Jorge Videla foi condenado e sentenciado à prisão perpétua por seu papel na “guerra suja” argentina em 1970, quando ocorreram tortura e execuções de prisioneiros desarmados. Esses crimes foram cometidos décadas atrás. O que pode significar esse veredicto tantos anos após a restauração da democracia na Argentina?

Processar Videla e outros perpetradores tornou-se possível devido à jurisprudência pioneira em que se baseou o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos. O Tribunal decidiu pela anulação das anistias concedidas aos líderes políticos e militares na Argentina e em outros países na região, como parte de uma transição para a democracia. O Tribunal considerou que a cobrança de responsabilidade pelos crimes dos ditadores é um direito humano – e, portanto, prevalece sobre a impunidade que beneficiou muitos ditadores latino-americanos, como condição para permitir as transições democráticas.

A mais recente decisão do tribunal regional, em meados de dezembro, revogou uma lei de anistia que protege 1.979 militares brasileiros contra processos por abusos cometidos durante os de 21 anos de ditadura militar no país. “As disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e a punição por graves violações dos direitos humanos”, decidiu o tribunal, são “incompatíveis com a Convenção Americana”. O efeito (dessa decisão) é exigir que aqueles que estavam no poder respondam pelo desaparecimento, pela força de armas, de 70 camponeses, no Araguaia, em uma campanha antiguerrilha.

A possibilidade de cobrança pode ser difícil. Mas não desistir da responsabilização, apesar da passagem do tempo, envia uma mensagem importante sobre os direitos humanos e o inequívoco caráter desses delitos como “crimes contra a humanidade”.

Nesses casos, as vítimas, advogados ativistas e organizações empenhadas na defesa dos direitos humanos recorreram ao tribunal regional de direitos humanos depois de esgotar suas opções no país. A cultura política e jurídica no país ainda não estava preparada para enfrentar frontalmente os fantasmas do passado autoritário. O próprio Tribunal Superior brasileiro, por exemplo, havia recentemente sustentado a constitucionalidade da lei de anistia, que foi apoiada por sucessivos governos brasileiros, todos “inclusive o governo de centro-esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva” omitiram-se no empenho pela responsabilização pelos crimes cometidos pela anterior ditadura militar no Brasil.

Na Argentina, mesmo sob a presidência de Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito democraticamente após o regime militar, execuções extrajudiciais cometidas pela polícia do país foram responsáveis por um terço de todos os homicídios.

Abusos similares foram cometidos pelos serviços de segurança do Peru durante a década de 1990 – crimes pelos quais o ex-presidente Alberto Fujimori está pagando agora.

Tudo isso mostra a fragilidade do controle e das instituições civis, apesar dos 30 anos de democracia. As novas democracias enfrentam muitos desafios políticos – e muitas vezes econômicos. A possibilidade de cobrança de responsabilidade da polícia e dos serviços de segurança pode ser particularmente difícil nos primeiros anos de um novo, e muitas vezes frágil, regime democrático. Mas não desistir da responsabilização, apesar da passagem do tempo, envia uma mensagem importante sobre os direitos humanos e o inequívoco caráter desses crimes como “crimes contra a humanidade”.

Não se trata apenas de uma questão relacionada à peculiar herança latino-americana. Com frequência, líderes políticos e elites militares e de segurança têm se revelado tão sagazes e tenazes ao evitar a justiça quanto mostraram-se astuciosos e brutais ao cometer injustiças. Eles nunca devem viver confiantes em que possam permanecer impunes. O Tribunal Penal Internacional não tem nenhum estatuto de limitações e, com razão, continuamos a processar e punir os perpetradores do Holocausto.

Anos depois (dos fatos ocorridos), o que está em jogo não é apenas punir, mas também a verdade política, que exige a fixação de limites oficiais justificáveis para ações repressivas. O regime militar na Argentina, afinal, caracterizou sua “guerra suja” como sendo uma ofensiva contra os chamados “terroristas”, e não como o que foi: perseguição arbitrária contra cidadãos com diversas ideologias e de diferentes classes sociais.

Essa lição, declarada juntamente com a sentença contra Videla, justifica os esforços para estabelecer um Estado de direito mundial. Tiranos em toda parte — e mais do que um punhado de democratas “deveriam ficar atentos.

Ruti Teitel é argentino e professor de Direito Comparado pela New York Law School, professor visitante na LSE e autor de “Transicional Justice” (Justiça transicional).