Trabalho: Em fazenda do Paraná, alojamento não tinha nem banheiro
Marcos de Moura e Souza, de Palmas (Paraná) e São Paulo
Um contêiner foi transformado em alojamento e era usado pelos trabalhadores no interior da fazenda da Madepar
Num barracão de 11 metros por 3 metros, sujo e improvisado, 19 beliches estão amontoados da entrada até os fundos. Há apenas duas janelas e uma porta de compensado de madeira numa das extremidades. Mesmo durante o dia, o ambiente fica na penumbra. O telhado é de zinco. Não há luz elétrica, banheiro ou qualquer tipo de aquecimento. No inverno, as temperaturas chegam quase a zero grau. Banhos são num vão de terra a céu aberto onde escorre um fio d´água gelada ou num quadrado improvisado com lona e sem porta. À noite, como não há colchões para todos, alguns dividem a mesma cama. Pelo menos dois adolescentes dormem com adultos.
Foi assim que integrantes do Ministério Público e da Procuradoria Regional do Trabalho do Paraná encontraram, no início deste mês, um alojamento de trabalhadores rurais contratados para podar uma plantação de pinheiros pinus numa fazenda na cidade de Palmas, no sudoeste do Paraná.
Além do contêiner principal, outro menor também tinha beliches
A área pertence à Madepar S.A. Indústria e Comércio (cujo nome fantasia é Madepar Agroflorestal). Ela integra um grupo ao qual pertencem a Madepar Papéis para Embalagem e a Madepar Laminados, todas sediadas no mesmo endereço na cidade de São Paulo.
Nos dias 8 e 9, uma equipe formada por auditores do trabalho, um procurador e policiais federais entraram nas fazendas da Madepar Agroflorestal em Palmas e autuaram a empresa por exploração de trabalho em condições análogas à escravidão. A operação se estendeu até sexta-feira passada. O Valor acompanhou os dois primeiros dias dos trabalhos a convite do Ministério do Trabalho e Emprego e da Procuradoria Regional do Trabalho do Paraná e se comprometeu a publicar a reportagem somente após o término da blitz.
Depois de anos registrando casos de trabalho análogo à escravidão quase exclusivamente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, autoridades passaram a intensificar suas ações em regiões onde até então havia poucos registros da prática. No ano passado, pela primeira vez desde 1995, a região Sudeste teve o maior número de resgatados – 1.079 casos de um total de 3.769 em todo o país. No Sul, o Paraná foi o principal alvo, com 15 operações realizadas no ano passado (ficando atrás só do Pará e do Mato Grosso).
“Sempre houve trabalho escravo aqui no Paraná, no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio. A questão é que o foco da fiscalização foi por muito tempo o Amazonas, Pará, Tocantins, Maranhão e áreas onde havia incidência mais visível dessa prática”, diz Luercy Lino Lopes, procurador da Procuradoria Regional do Trabalho do Paraná, que participou da ação na área da Madepar. “Há alguns anos começamos a nos dar conta que a realidade daqui é a mesma da do Pará.” Lá, carvoarias costumam estar no centro das irregularidades; no Paraná, erva-mate e madeira.
Claudio Belli
O banheiro era improvisado e sem portas
O que contribuiu para ampliar o alcance das ações e redirecionar os olhos das autoridades foi a alteração do Artigo 149 do Código Penal pela Lei 10.803, de 2003. A lei detalhou quatro condutas que, juntas ou isoladamente, passaram a configurar trabalho análogo à escravidão. São elas: submeter o trabalhador a trabalhos forçados, submeter o trabalhador à jornada exaustiva, sujeitar o trabalhador a condições degradantes de trabalho e restringir a locomoção do trabalhador em razão de dívida para com o empregador ou preposto. Antes da lei, o conceito de escravidão no Brasil levava em conta apenas os casos de trabalho forçado e escravidão por dívida.
“Com esse alargamento do conceito, não ficamos mais presos nos casos da Amazônia e do Norte, onde havia muita servidão por dívida e trabalho forçado, e onde dependíamos fundamentalmente de denúncias”, diz Marcelo Campos, auditor fiscal do trabalho e assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. “Isso permitiu que fôssemos atrás de outras regiões e de outras atividades econômicas.”
Foi assim que autoridades passaram a fazer blitze em plantios de café, de morango e de uva, em áreas de colheita de erva-mate e nas fazendas do setor sucroalcooleiro no Sul e no Sudeste. Em 2002, um ano antes da aprovação da lei, o ministério não havia feito nenhuma operação nos Estados do Sul; em 2009 foram 24. No Sudeste, o salto foi de 1 para 18. Em todo o Brasil, o número de operações saiu de 30 para 156. O número de resgatados subiu de 2.285 para 3.769. Em 1995, quando o ministério começou a rastrear o trabalho escravo, apenas 84 pessoas foram retiradas da condição de escravo.
Nos últimos anos, o traço em comum na maioria das autuações passou a ser a degradação. “No ano passado, encontramos em Bituruna, aqui no Paraná, trabalhadores contratados para colher erva-mate alojados num curral. No mês passado, em Santa Catarina, encontramos outro grupo, que dormia num chiqueiro de porcos”, lembra a auditora fiscal do trabalho Luize Surkamp Neves, coordenadora do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que combate trabalho escravo na região Sul. Foi ela quem liderou a operação em Palmas.
Segundo Campos, a situação de degradação – junto ou não com outras condutas previstas no Artigo 149 – aparece em todas as mais de 45 condenações de empregadores julgados pela prática de trabalho escravo no Brasil. As condenações decorrem das ações de fiscalização. Além das autuações administrativas, as operações também podem gerar ações penais aos empregadores. Explorar trabalho escravo é crime punível com pena de dois a oito anos de prisão.
No caso das fazendas da Madepar, além de alojamentos classificados pelos auditores como impróprios, o que a equipe encontrou foram trabalhadores sem equipamento de proteção, dizendo que tinham de pagar para obter ferramentas e providenciar colchões; fornecimento de água com potabilidade duvidosa; falta de banheiros; trabalhadores sem registro em carteira; e, além disso, cinco menores fazendo um tipo de trabalho proibido para sua idade.
“Há uns quatro anos trabalho com pinus, mas esse é o pior lugar que já fiquei”, diz Rodrigo Almeida, de 19 anos. Ele tinha começado a trabalhar dois dias antes da operação e estava alojado no barracão improvisado de madeira. Outros dormiam em um contêiner com beliches. “Tinham me falado que tinha alojamento, só não disseram como era.” Mario, 27 anos, completa: “O pior é o ´apertamento´ e a falta de luz.” Contratados por um dos intermediadores de mão de obra da região, Rodrigo e Mário disseram que ganhariam R$ 32 por dia para uma temporada de 15 dias, sem registro em carteira e sem equipamentos de trabalho. “Comprei bota, coberta, prato, garfo, faca. Capacete e luva a gente não usa”, conta Rodrigo.
As irregularidades nas fazendas criaram um quadro considerado pelas autoridades como degradante. Além de serem obrigados a pagar multas e encargos, os empregadores podem ter o nome incluído, por no mínimo dois anos, na lista de exploradores de trabalho escravo organizada pelo ministério. Isso pode levar a uma suspensão total de crédito público e privado no período. E implica o risco de perder contratos com empresas signatárias do Pacto para a Erradicação do Trabalho Escravo.
Ao todo, as blitze na Madepar resgataram 67 trabalhadores, entre eles cinco adolescentes. Parte deles trabalhava na manutenção dos plantios de pinus e parte na colheita de erva-mate. A empresa teve de pagar R$ 108.609,99 em verbas rescisórias; R$ 169.000,00 em indenizações por danos morais (de R$ 1.000 a R$ 5.000 para cada um) e R$ 240.000,00 por dano moral coletivo. Com o pagamento do FGTS, dos valores devidos à Previdência e multas pelos 55 autos de infração lavrados, os valores poderão passar de R$ 650 mil, disse Lino Lopes. Parte disso foi pago em dinheiro na dia 23 aos resgatados no escritório da empresa na cidade de General Carneiro, Paraná.
Se não aceitasse fazer o pagamento e recorresse à Justiça, a Madepar correria o risco de ter seus bens congelados no valor da cobrança e ver a conta final multiplicada. Segundo o Ministério do Trabalho e a procuradoria, a maioria dos empregadores autuados por sujeitar trabalhadores à condição análoga opta por acertar as contas durante as autuações.
As condições dos trabalhadores resgatados nas fazendas da Madepar não são muito diferentes das existentes em outras áreas rurais flagradas na região, segundo os auditores. Entre as semelhanças está a terceirização de mão de obra. A empresa, segundo seu advogado Gilberto Dil Prá, estava trabalhando com três ou quatro empreiteiros – termo usado no Paraná e em Santa Catarina para agenciadores ou intermediadores de mão de obra. A prática no meio rural, segundo o ministério, é proibida por lei de 1973, mantida pela Constituição de 1988.
“No Brasil, o trabalho escravo está associado à intermediação de mão de obra e no Sul isso se vê em quase todos os flagrantes. E a intermediação vem acompanhada em 100% das vezes de precarização”, diz Lino Lopes. Para Campos, do Ministério, a solução está em mudar o comportamento do empregador. “Ele precisa ter certeza de que esta prática não é um bom negócio.” Para o governo e grupos de direitos humanos, uma mudança crucial está na Câmara dos Deputados. O projeto de emenda constitucional (PEC) 438 prevê a expropriação e destinação para reforma agrária de toda área rural flagrada com mão de obra escrava. O projeto já passou pelo Senado.