Carlos Ferrari
As manifestações que têm tomado conta do país nos últimos meses são provas reais de que, diferentemente do que muitas pessoas insistiam em afirmar, o povo brasileiro tem consciência sim de suas demandas, carências, urgências e necessidades. O cidadão não está alheio aos problemas que assolam o país. Ao contrário, ele deseja mudanças, anseia por transformações e sabe que precisa reivindicá-las, brigar para que elas sejam viabilizadas. É nesse mesmo contexto que a militância e os movimentos organizados devem lembrar e suscitar debates sobre um dos marcos mais importantes, envolvendo a luta em favor das pessoas com deficiência no Brasil: a instituição da Lei de Cotas, que em julho completou 22 anos em vigor no país.
Criada em julho de 1991, a Lei Federal 8.213, que reserva de 2% a 5% de vagas em empresas com mais de 100 funcionários para contratação de pessoas com deficiência, surgiu em um país muito diferente do atual no que se refere à garantia de direitos e, de fato, ajudou a transformar o cenário nacional da inclusão. Associado a um significativo fortalecimento dos movimentos sociais que lutavam por equiparação das igualdades, bem como por uma intensificação da fiscalização para cumprimento da lei junto às empresas, já no final da década de 90 foi possível perceber o impacto positivo que a Lei de Cotas teve para a abertura do mercado de trabalho para cidadãos com deficiência.
Atualmente, apesar de a Lei continuar exercendo o mesmo papel relevante na busca pela inclusão, os desafios ainda são muito grandes. Segundo dados do Ministério do Trabalho, há hoje no Brasil cerca de 306 mil trabalhadores com deficiência formalmente empregados, um índice ainda tímido frente ao número de pessoas com deficiência que vivem hoje no país, que já passa de 45 milhões de brasileiros, ou seja, 23% da população. De acordo com o Censo 2010, o total de pessoas com deficiência com emprego formal no país representa apenas 1,6% dos brasileiros com este perfil que teriam condições de ocupar uma vaga no mercado. Para que se possa comparar, no caso de pessoas sem deficiência os números também não são bons, mas extremamente mais favoráveis, visto que 52,9% já têm sua condição de vínculo trabalhista formalizada.
Segundo estatísticas de 2011 da Rais – Relação Anual de Informações Sociais, o maior índice de inclusão está entre as pessoas com deficiência física: são 77,7 mil trabalhadores, ou 44,60% do total. Em seguida, estão as pessoas com deficiência auditiva (27,9 mil ou 37,88% do total), deficiência visual (9,8 mil ou 44,70%), intelectual (5 mil ou 26,46%) e múltipla (1,4 mil ou 33,61%).
O universo da pessoa com deficiência sempre foi cercado por uma série de mitos que contribuem para reforçar a visão equivocada de que nesta parcela da população não encontramos pessoas com alto potencial produtivo. Quando falamos em deficiência intelectual, como se pode ver pelos dados acima, os desafios são ainda maiores, sobretudo no que se refere à quebra de preconceitos que parecem estar enraizados no imaginário coletivo.
Mais importante do que contabilizar esses cidadãos dentro de estatísticas, porém, é promover um amplo questionamento sobre o que vem sendo feito em favor desta parcela significativa da população. De que forma os governos, sociedade civil, empresas e instituições estão se mobilizando para que esses cidadãos tenham qualidade de vida, igualdade de oportunidades e possibilidade de inclusão em todos os âmbitos sociais?
Na questão da empregabilidade, como vimos, temos um longo caminho pela frente. Obviamente, o enfrentamento do problema é complexo e exige muito mais que apenas boa vontade por parte dos empregadores. É importante também que se tome consciência sobre a importância de investir na educação e capacitação adequada desses talentos, além de se promover processos de seleção e colocação bem fundamentados, nos quais se faça uma análise minuciosa do perfil de cada pessoa e do seu grau de habilidade para desempenhar as funções das vagas abertas pelo mercado.
Além do preconceito cultural instaurado no Brasil, outra realidade que dificulta a inclusão se deve à dificuldade de algumas empresas no que se refere à expertise de capacitação e treinamento desses profissionais, já que é muito importante orientar devidamente estes colaboradores para o exercício pleno das atividades cotidianas. É necessário o investimento em estratégias de inclusão e políticas públicas bem consolidadas para ampliar o número de inclusões no mercado e, aos poucos, mudar a mentalidade da sociedade.
O Brasil tem muitos talentos ainda não aproveitados, escondidos entre a população de pessoas com deficiência. Temos milhões de jovens e adultos cegos, surdos, com deficiências físicas e intelectuais, ansiosos e dispostos a ingressar em um mercado que grita aos quatro cantos que hoje vive um problema de crescimento – gerado pelo gargalo da mão de obra. Agora é a hora de superarmos o déficit de anos e intensificarmos estratégias que possam conjugar capacitação e inserção laboral.
É preciso ainda criar, nas empresas, a cultura da inclusão efetiva, segundo a qual há a preocupação de realmente aproveitar todo o potencial do trabalhador, indo além do objetivo primeiro de cumprir a Lei de Cotas para evitar o recebimento de multas. Se houver interesse em capacitar e extrair o melhor desse profissional, ele certamente renderá bons resultados para a empresa, assim como acontece com qualquer pessoa que busca uma oportunidade no mercado. A cada dia, encontramos exemplos fantásticos que engrossam um novo paradigma de que todos podem sim ser importantes para a nossa sociedade, desde que ela saiba reconhecer e alavancar as potencialidades de seus cidadãos.
Carlos Ferrari é presidente da Avape – Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência, ex-presidente do CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social, e atual conselheiro do CNS – Conselho Nacional de Saúde. Administrador de empresas, pós-graduado em marketing e mestre em administração, Ferrari é deficiente visual de nascença e ficou cego aos sete anos de idade.