Camilla Veras Mota | De São Paulo
A indústria brasileira tornou-se fortemente dependente do setor automotivo. De 15,9% entre 2004 e 2008, o impacto do setor na produção industrial do país passou a 46,1% entre 2009 e 2013, ou seja, quase metade da produção foi determinada pelo setor automotivo, segundo a consultoria Tendências. O aumento deve-se principalmente aos incentivos governamentais no período pós-crise de 2008, quando parte da indústria perdeu dinamismo por conta da valorização do real e da maior concorrência externa. Em 2014, com o fim de incentivos e a alta do dólar, a participação deve diminuir. Em cinco anos, a renúncia fiscal para o setor automotivo foi de R$ 12,3 bilhões.
Incentivo eleva peso do setor automotivo na indústria do país
Os incentivos governamentais tornaram a indústria brasileira mais dependente do setor automotivo no período pós-crise. De acordo com estudo feito pela consultoria Tendências a pedido do Valor, no ano passado o segmento foi responsável por 69,1% do aumento da produção industrial e contribuiu com 0,8 ponto percentual para a alta de 1,2%. Em 2008, a participação foi de 18,4% – o avanço de 8,1% na produção do segmento automotivo respondeu por 0,6 do resultado geral, de 3,1%.
A dependência, na opinião de Rodrigo Baggi, economista da consultoria, é reflexo principalmente dos benefícios fiscais concedidos pelo governo ao setor, que estimularam as vendas em um período em que a grande maioria dos ramos industriais perdia dinamismo por conta da valorização do real e do aumento da concorrência externa. “Redução de imposto sempre é positiva. O problema é quando os incentivos não são dados de forma horizontal, quando são criadas distorções como essa”, avalia. Com o ano mais difícil previsto para o setor automotivo e a recuperação de outros segmentos em decorrência da desvalorização do real e da retomada das exportações, a tendência é que essa participação caia gradativamente em 2014, prevê Baggi.
Nos cálculos do economista, o impacto do setor automotivo na produção industrial passou de 15,9% em média por ano entre 2004 e 2008 para 46,1% de 2009 a 2013 – nesse intervalo, portanto. quase metade do resultado da produção foi determinado pelo desempenho do setor automotivo. Para captar melhor a relação entre as duas variáveis, a medida de impacto é modular, ou seja, não leva em conta sinais negativos e positivos. Caso contrário, explica Baggi, o tombo de 2,5% da produção em 2012, para o qual o segmento contribuiu com menos 1,5 ponto, seria praticamente neutralizado pela alta do ano passado. A análise considera como setor automotivo a produção de veículos leves, alguns veículos pesados e autopeças.
Entre dezembro de 2008 e setembro de 2009 o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ficou zerado para automóveis de até mil cilindradas. O tributo para carros entre mil e duas mil cilindradas passou de 13% para 6,5% para aqueles movidos a gasolina e foi de 11% para 5,5% entre os flex ou que usam álcool como combustível. De outubro de 2009 ao começo de 2012 as alíquotas foram sendo gradativamente recompostas, mas voltaram a cair em maio daquele ano, no rol de medidas anticíclicas tomadas pelo governo para minorar os efeitos da segunda onda da crise. Em 2013 e no começo deste ano o imposto voltou a subir, mas continua em patamar bastante inferior ao da alíquota cheia. Em cinco anos, a renúncia fiscal para o setor automotivo foi de R$ 12,3 bilhões, segundo dados da Receita Federal.
Mesmo sem a ajuda, defende Baggi, o segmento teria conseguido alcançar resultados positivos nos anos pós-crise. “O setor automotivo tem um potencial de crescimento enorme no Brasil. Mesmo com o aumento da motorização nos últimos anos, a densidade veículo por habitante ainda é baixa aqui”, afirma.
A diretora de pós-graduação Lato Sensu do Insper e especialista em setor automotivo, Letícia Costa, concorda e afirma que, desde 2004, a indústria automotiva voltou a crescer no país, depois de passar por má fase entre 1999 e 2003, e conseguiu elevar sua margem de rentabilidade muitas vezes a patamares superiores aos obtidos nos mercados maduros.
Para ela, medidas como a redução de IPI não atacam a baixa produtividade e competitividade da indústria automotiva brasileira e, portanto, não promovem mudanças estruturais no setor. Elas provocam, na realidade, uma antecipação de demanda, que vem mostrando esgotamento desde o ano passado, quando as vendas caíram em relação ao ano anterior pela primeira vez em dez anos. O encarecimento do crédito e o nível maior de endividamento das famílias também abre pouco espaço para uma retomada dos licenciamentos neste ano, acredita Letícia.
O professor Mario Sergio Salerno, do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), ressalva, porém, que é difícil ignorar os benefícios pedidos pelas montadoras. A indústria automobilística tem um impacto econômico importante e um peso simbólico em qualquer país, já que fabrica “objetos de desejo”. Por isso, os estímulos não são exclusividade brasileira. “Os Estados Unidos, por exemplo, decidiram salvar a General Motors; já a França subsidia pesadamente o carro elétrico da Renault”, diz o professor, que foi diretor de estudos setoriais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2003 a 2005 e diretor de desenvolvimento industrial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) entre 2005 e 2007. “Ela mexe com tudo, da indústria química à siderurgia”.
O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Moan, afirma que a impressão de alta rentabilidade do setor é falsa e reclama da pesada carga tributária que incide sobre os automóveis no país. A entidade estima que o incremento nas vendas possibilitado pelo benefício da desoneração gerou uma arrecadação extra líquida de R$ 8,2 bilhões entre maio de 2012 e dezembro de 2013, incluindo tributos como PIS/Cofins, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).
Boa parte dos economistas concorda, porém, sobre a importância do segmento automotivo para a inovação. Ele é um dos poucos no Brasil em que se observa um investimento significativo feito por multinacionais, afirma Bernardo Hauch, gerente do departamento das indústrias metal-mecânica e de mobilidade do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Geralmente são as companhias nacionais que aplicam maior percentual do faturamento para otimizar processos e desenvolver novos produtos. Em 2011, segundo o economista, 23% de todo o investimento em pesquisa e desenvolvimento feito pela indústria de transformação brasileira veio desse segmento, a maior contribuição da lista. O percentual equivale a um terço de tudo o que o setor automobilístico investiu naquele ano, inclusive em ampliação de capacidade produtiva.
Nesse sentido, a americana Ford, por exemplo, tem no Brasil um dos quatro centros de manufatura virtual que mantém no mundo. Além da unidade localizada no município de Camaçari, na Bahia, há outras na China, nos Estados Unidos e na Alemanha. Daniel Blanck, supervisor de engenharia de manufatura virtual da Ford na América do Sul, conta que a tecnologia, que permite que todo o processo de produção do veículo seja simulado virtualmente antes que seja colocado em prática, foi implantado no Brasil entre 2008 e 2009, oito anos depois da matriz. O engenheiro estima que, com o novo planejamento virtual da linha de montagem, a distância entre o desenho do protótipo do veículo e seu lançamento no mercado foi encurtado em dez ou doze meses.
O BNDES também enxerga um esforço do segmento para se “tecnificar” no Brasil. Hauch diz que, nos últimos cinco anos, o contingente de engenheiros no setor cresceu 53%, contra 7% de avanço na média geral da ocupação na indústria. Mesmo com todos os avanços, no entanto, o percentual do faturamento investido em inovação pelo setor automotivo no Brasil é de 1,4%, contra 5,6% na Alemanha e 4,3% em média nos países desenvolvidos. Por conta disso, afirma, o banco decidiu abrir linhas de crédito específicas para o setor, como o Proengenharia e o Inovar-Auto (um programa do governo federal).
Entre 2014 e 2017, afirma Hauch, o segmento viverá um ciclo “importante” de investimentos. O BNDES estima que o setor automotivo aplique R$ 74 bilhões nesse período, valor 67% maior do que no quadriênio anterior. O valor representa aproximadamente 7% do que a instituição projeta que seja investido pela indústria no intervalo.