Por Valdete Souto Severo
Juíza do Trabalho
Tenho ouvido muito que estamos em um beco sem saída. No fim do túnel nos espera um trem em alta velocidade. Não consigo partilhar essa compreensão do nosso momento histórico, talvez meu otimismo esteja se tornando patológico. O fato é que sigo convencida de que sempre existem caminhos.
No Brasil, superamos a defesa institucional do trabalho infantil como o melhor meio de formar bons trabalhadores; superamos a escravidão institucionalizada; superamos uma ditadura civil, militar e sobretudo midiática.
Em nossas vidas pessoais, enfrentamos doenças, distâncias, luto. Esses dias, ouvi uma mulher da minha idade narrar que após da morte do filho de 16 anos, por adolescentes drogados que queriam roubar seu tênis, resolveu trabalhar como voluntária ajudando jovens detentos em sua ressocialização. Assim, ela enfrenta uma dor que, muitos diriam, é insuportável.
Então, como afirmar que não existem caminhos?
É evidente que os caminhos nem sempre são fáceis. Algumas vezes, aliás, são muito difíceis, parecem um teste de resistência.
Não há dúvida de que vivemos tempos sombrios, de exceção, pois nossas instituições, embora sigam funcionando no nível da aparência, estão, em sua essência, dissociadas de suas finalidades, perdidas ou mesmo intencionalmente cooptadas por interesses espúrios. Até mesmo os direitos liberais estão sendo desrespeitados.
No âmbito dos direitos sociais o ataque é ainda mais feroz e indisfarçável. Todos os dias uma novidade que, embora tenhamos de enfrentar no nível do discurso jurídico, pois esse é o nosso espaço de luta, certamente não se resolverá apenas pela aplicação de normas jurídicas.
Nesse aspecto, a “reforma” sugere uma reflexão importante.
A ideia de que uma lei pode alterar a realidade e conformar a mentalidade de uma geração de trabalhadores, empregadores e juristas é tributária da noção de Direito e de Estado que se forma ainda no Século XVIII, com o objetivo específico de permitir a transformação social revolucionária então proposta pela burguesia. E nem mesmo naquele período essa racionalidade funcionou como se esperava. Os códigos foram interpretados, adaptados e mesmo alterados a partir da vontade dos intérpretes, das correlações materiais de força e mesmo das necessidades sociais da época.
Ainda assim, serviu para estabelecer uma nova ordem e, principalmente, nos legou uma visão matemática do Direito, que teve de ser enfrentada, criticada e em alguma medida desconstruída ao longo do Século XX. E que ainda nos contamina. Por isso, o pânico daqueles que, declarando-se os pais da “reforma”, encontram-se diante de discussões acadêmicas e práticas, acerca da impossibilidade de aplicação de um texto que fere de morte a espinha dorsal do Direito do Trabalho, sua razão histórica de existência.
O desespero foi tanto que na mesma semana em que a Lei 13.467/17 entra em vigor, uma medida provisória (808) já promove inúmeras alterações. Essa MP não soluciona os problemas apontados na Lei. Ao contrário, apresenta-se como uma espécie de resposta a algumas das críticas a ela apresentadas por diferentes setores da sociedade. Então, a MP nada mais faz do que reconhecer as impropriedades do texto, o modo açodado de sua edição e a impossibilidade de compatibilizá-la com a ordem constitucional vigente. Confirma, evidentemente contra a vontade de seus autores, todas as críticas endereçadas à “reforma”.
O que precisamos compreender, porém, para encontrar caminhos de resistência, é o que está em jogo nessa lógica de colocar em textos legais regras avessas à proteção trabalhista, desconectadas com o sistema jurídico de proteção instituído em nossa Constituição. Não estamos lidando com uma alteração legislativa apenas.
“Por isso, os caminhos para resistir não podem ser circunscritos à análise crítica do texto legal ou mesmo às possibilidades de uso dessa legislação “contra si mesma”, contra seus propósitos precarizantes.”
Até porque o debate jurídico, mesmo à luz da mais reacionária doutrina hermenêutica, revela-se fácil: dentro do sistema jurídico brasileiro (não apenas constitucional) não há como sustentar gratuidade da justiça que implique ônus ao trabalhador; não há como vedar acesso à justiça; não há como aceitar trabalho remunerado com salário inferior ao mínimo, jornada de 12h sem intervalo ou gestante trabalhando em ambiente insalubre. Não há como sustentar acordos individuais lá onde a Constituição exige discussão e aprovação coletiva da matéria. Simplesmente não dá!
Aliás, mesmo que não tivéssemos a Constituição de 1988, a maioria absoluta das alterações propostas pela “reforma” esbarrariam na função jurídica de contenção que o Direito do Trabalho deve exercer em um sistema capitalista de produção. Aplicá-las é negar a razão histórica pela qual temos regras trabalhistas: a necessidade social de proteção a quem trabalha.
No campo do discurso jurídico, portanto, temos facilidade em afastar não apenas os piores dispositivos da “reforma”, mas a integralidade do seu conteúdo, mesmo que utilizemos argumentos que, como disse alguém dia desses, se pretendam destituídos de “chororó ideológico”. É verdade.
Ainda que eliminemos a discussão acerca do que há de perverso no fato de que nossa sociedade se sustenta na possibilidade de sujeição de um ser humano a outro, por oito ou mais horas do dia, como único meio de obter subsistência física; ainda que ignoremos o modo autoritário e antidemocrático como a lei foi aprovada no parlamento; mesmo que esqueçamos a razão histórica pela qual temos Direito do Trabalho, ainda assim podemos afastar praticamente todos os artigos dessa lei, com base apenas no exame “puro” de sua (in)compatibilidade com outras regras trabalhistas, com a Constituição e com os tratados internacionais assinados pelo Brasil.
“A questão é que nosso problema não é jurídico e, por isso mesmo, os caminhos para resistir não poderão passar apenas por interpretações judiciais acerca das regras trabalhistas.”
Estamos enfrentando um projeto de sociedade que se inspira na lógica da máxima exploração de quem trabalha, da eliminação do mercado interno e da pauperização da maioria absoluta das pessoas. Inspira-se na ideia de um consumo seletivo e da aceitação de um número cada vez maior de seres humanos “descartáveis”.
A “reforma” pode ser, em alguma medida, resultado da revanche da Casa Grande contra a Senzala, que ousou ter acesso a bens básicos de consumo antes fruídos por ela, como afirmam alguns; mas é também, sem dúvida, resultado do movimento cíclico de um sistema que não é feito para todos, que se alimenta da destruição dos recursos naturais, que se move de modo predatório e que se baseia na acumulação de riquezas nas mãos de poucos. Então, é preciso enfrentá-la no campo do discurso político, revelando o projeto de sociedade que ela representa.
É preciso denunciar o que já está ocorrendo nos países que se sujeitaram ao desmanche, em grau que sequer se compara com aquele proposto no Brasil. E demonstrar empiricamente que naqueles locais não houve modernização ou geração de empregos; houve pobreza, miséria, desespero.
É preciso denunciar a opção econômica que se esconde por traz de todo o conjunto de “reformas” sociais que seguem sendo propostas e revelar as consequências sociais dessa opção política e econômica. Consequências que já estão sendo sentidas: aumento da pobreza, do estresse, do adoecimento, da violência urbana. Consequências silenciosas, como a potencialização dos poderes que o empregador já detém no ambiente de trabalho. E é indispensável agir em relação a isso.
Sempre me intrigou o fato de que na década de 1960 as pessoas seguiram trabalhando, casando, tendo filhos, enquanto uma ditadura sangrenta era instaurada, promovendo prisões arbitrárias, perseguindo, torturando, matando.
Hoje, eu entendo como isso é possível.
Em momentos de crise aguda como a que estamos enfrentando, numa lógica em que a grande mídia, novamente, apresenta-se como parceira do golpe desferido contra a classe trabalhadora, anestesiando e capturando subjetividades, não é fácil compreender o que está ocorrendo.
Parece um filme… de terror.
Por isso mesmo, também não é fácil resistir.
Em um primeiro momento, é mesmo razoável que, como ocorre diante de uma tragédia, nos sintamos paralisados, indefesos, incapazes de agir. Entretanto, a psicanálise nos ensina que nesses momentos de crise, em que somos retirados da nossa zona de conforto, também criamos as condições internas e sociais para o novo. Se estamos mesmo entre o “não mais” e o “ainda não”, se estamos em crise, então todas as possibilidades se abrem a nossa frente.
Podemos avançar para concretizar a Constituição de 1988 em tudo o que até hoje ignoramos de seu texto, tal como o direito fundamental à relação de trabalho protegida contra dispensa arbitrária.
“Podemos construir um novo Direito do Trabalho, resgatando e ressignificando sua função histórica de contenção da ânsia destruidora do capital, recuperando o sentido e a importância da proteção a quem trabalha.”
Podemos até construir as bases para a superação do sistema do capital.
A única coisa que não podemos é desistir.
Não temos esse direito.
As gerações que nos antecederam, que lutaram, sofreram, morreram para que garantias sociais fossem conquistadas, nos fazem responsáveis pela conservação dessa luta historicamente desigual para a construção de um mundo melhor.
Nós estamos sendo convocados a agir. E não nos enganemos, a “reforma” trabalhista é apenas um elemento de algo maior. Então, o melhor caminho para resistir é aceitar esse desafio e realmente agir, em todos os âmbitos das nossas vidas, como pais, consumidores, amigos, cidadãos, juízes, advogados, trabalhadores ou patrões.
É rejeitar qualquer forma de terceirização; de precarização; denunciar o desmanche; lutar para que as Leis 13.429 e 13.467 sejam revogadas; negar sua aplicação aos processos em curso, mas também aos novos.
É revisitar a Constituição e aplicá-la de forma intransigente.
É ter a coragem de dizer que essa lei é fruto de um processo antidemocrático de retirada das garantias historicamente conquistadas, cujo objetivo final imediato é destruir o espaço de cidadania que a Justiça do Trabalho representa e, com ela, a própria lógica de Estado Social.
A história está sendo construída com nossos atos. Não é hora de paralisar, é hora de resistir para avançar.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD.