O Brasil é o décimo mais desigual no ranking do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Décimo país mais desigual do mundo no ranking do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil parece ter se acostumado com o abismo que separa ricos e pobres. No ano passado, o grupo do 1% mais abastado teve rendimento médio 36 vezes superior ao da metade mais desprovida da sociedade. A estarrecedora estatística, divulgada pelo IBGE em abril, recebeu tímidas menções na mídia.
A distorção é reconhecida há tempos. Em 2011, Fernando Gaiger Silveira, pesquisador do Ipea, revelou que os 10% mais pobres comprometiam 53% de todos os seus rendimentos com pagamento de impostos, ao passo que os 10% mais ricos dispendiam apenas 23% de sua renda. A injustiça decorre, sobretudo, do elevado peso dos tributos indiretos, que incidem sobre o consumo. Como os que ganham menos costumam sacrificar a maior parte dos vencimentos com alimentação, moradia e transporte, acabam sobretaxados.
Apesar de o diagnóstico ser mais do que conhecido, a reforma tributária em discussão no Congresso Nacional, sob a relatoria do deputado tucano Luiz Carlos Hauly, limita-se a propor uma simplificação do sistema, com a substituição de um conjunto de tributos por um imposto de valor agregado, semelhante ao adotado na Europa. Não há, porém, qualquer proposta para aumentar a taxação sobre a renda e o patrimônio, de forma a aliviar a carga incidente sobre o consumo.
Por essa razão, um movimento suprapartidário, encabeçado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) e pela Fenafisco, entidade homóloga que atua em nível estadual, apresentou recentemente um manifesto na Câmara por uma “Reforma Tributária Solidária”, capaz de reduzir as desigualdades e estimular o desenvolvimento.
Entre 4 e 6 de junho, as entidades vão realizar, em São Paulo, o “Fórum Internacional Tributário”, com a presença confirmada de renomados especialistas estrangeiros, a exemplo do economista irlandês Marc Morgan Milá, pesquisador do World Wealth and Income Database, instituto dirigido pelo francês Thomas Piketty. Na abertura do evento, será lançado o livro A Reforma Tributária Necessária, alentado diagnóstico do cenário brasileiro feito por 42 especialistas.
CartaCapital recebeu, em primeira mão, uma prévia da obra, organizada por Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e colunista do site. “Ninguém é contra a simplificação na cobrança de impostos. A proposta em discussão na Câmara não altera, porém, o caráter regressivo do sistema, que cobra proporcionalmente mais de quem tem menos. Além disso, vários dos tributos que serão extintos têm recursos carimbados para financiar as áreas sociais do governo, e não há clareza se a vinculação será mantida no novo formato.”
O movimento defende que a reforma aumente a tributação direta, que incide sobre a renda e o patrimônio das camadas mais ricas da população, e reduza a tributação indireta. Além da defesa de uma maior progressividade na cobrança de impostos, o grupo propõe a criação de um fundo para financiar a proteção social, principal instrumento de redução das desigualdades. “Essas duas medidas, combinadas, são indispensáveis para assegurar o desenvolvimento econômico e social do País”, diz Fagnani.
“Ao aliviar a carga sobre os mais pobres, aumentará a renda disponível para consumo. Com a demanda aquecida, a produção e a geração de empregos tendem a crescer. Da mesma forma, se o brasileiro tiver serviços públicos de qualidade, não precisará mais gastar com saúde ou educação privada. Sobrará ainda mais dinheiro para consumir. Cria-se um ciclo virtuoso, capaz de nos reconectar com o tão sonhado Estado de Bem-Estar Social previsto na Constituição de 1988 e existente na Europa.”
Atualmente, o sistema brasileiro apresenta anomalias sem precedentes no mundo desenvolvido. Os impostos sobre o consumo representam 49,7% da carga tributária total, enquanto os tributos sobre a renda e o patrimônio representam porcentuais bem mais modestos, 21% e 4,4%, respectivamente. Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a taxação sobre o consumo é sempre inferior à soma dos outros dois tipos de tributos. Nos EUA, 49,1% da carga provém de impostos sobre a renda e 10,3%, sobre o patrimônio. Os impostos sobre o consumo correspondem a 17%.
“Há muito tempo a estrutura tributária tornou-se um obstáculo para o crescimento. Desde os anos 1990, para garantir o pagamento de juros da crescente dívida pública, o governo viu-se forçado a aumentar a arrecadação. Em vez de avançar na tributação direta, que sempre enfrenta maior resistência dos setores abastados, preferiu criar novas contribuições sociais e econômicas. Esses ‘puxadinhos’ acabaram por deformar a estrutura tributária no País, sacrificando a competitividade da indústria nacional”, explica o pesquisador Fabrício Augusto de Oliveira, autor do premiado livro Economia e Política das Finanças Públicas no Brasil e um dos colaboradores da obra a ser lançada pela Anfip e Fenafisco.
“Não propomos um aumento da carga tributária global, hoje superior àquelas de economias emergentes e semelhante às de nações desenvolvidas. A ideia é redistribuir essa carga, de forma a aliviar o peso para os mais pobres e fortalecer o mercado interno.”
As anomalias não param por aí. Em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso extinguiu a tributação sobre lucros e dividendos. Dos 35 integrantes da OCDE, apenas a Estônia adotou isenção semelhante. Dessa forma, os donos e acionistas de empresas, os mais ricos, passaram a pagar menos impostos.
Além disso, o País tem atualmente apenas quatro alíquotas de Imposto de Renda, a mais alta de 27,5%. Nos países desenvolvidos, há um maior número de alíquotas, a taxação é progressivamente maior para os mais ricos e a cobrança máxima é quase sempre superior a 40%. Na América Latina, a média é de 31,5%.Os efeitos dessas distorções foram demonstrados pela Oxfam em 2017, quando divulgou o relatório A distância que nos une, um retrato das desigualdades brasileiras. Quem tem renda superior a 320 salários mínimos mensais (299.840 reais) paga uma alíquota efetiva de imposto de renda, após todos os descontos, deduções e isenções, similar àquela de quem ganha cinco salários mínimos (4.685 reais), e quatro vezes menor em comparação com cidadãos que recebem entre 15 e 40 salários.
O financiamento da proteção social depende de um aumento da arrecadação, razão pela qual o movimento propõe uma revisão da política de desonerações, em franca expansão. Como CartaCapital demonstrou na edição 996, o Brasil deverá abrir mão de mais de 283,4 bilhões de reais em renúncias fiscais em 2018. Estimado pela Receita Federal, o valor é superior à soma dos orçamentos da Educação e da Saúde: 107,5 bilhões e 131,4 bilhões, respectivamente. Reivindica-se ainda o aperfeiçoamento dos instrumentos de combate à sonegação e evasão, inclusive com a criminalização das condutas. Pela atual legislação, quem quita ou parcela o débito antes de a Justiça receber a denúncia é beneficiado pela extinção da punibilidade.
Diretor da Sociedade Brasileira de Economia Política e coordenador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp, Pedro Rossi afirma que a política tributária pode servir tanto como um vetor de desenvolvimento social quanto de crescimento econômico.
Em um país no qual metade da população ainda não tem acesso à rede coletora de esgoto, reservar recursos para investir em obras de saneamento básico beneficia não apenas a população atendida, mas também o setor de construção civil, ressalta o economista. “O que não se pode é manter a lógica perversa de oferecer um benefício com uma mão e retirar com a outra. Por vezes, o Estado oferece um serviço público à população mais pobre, e depois diminui a sua renda, por meio da excessiva taxação sobre o consumo”.
Em agosto, o grupo pretende lançar outro livro sobre o tema. “Essa primeira obra é focada no diagnóstico e nas premissas do projeto que temos em mente. Na segunda, apresentaremos propostas mais concretas de intervenção, acrescentando as sugestões dos especialistas estrangeiros que participarão do fórum internacional”, explica Fagnani. “A ideia é que esses dois livros contribuam para pautar uma reforma assentada em um projeto de desenvolvimento econômico e social, inclusive durante as eleições deste ano”.