No texto, há um gatilho que permite aumentar a idade mínima para além dos 65 anos. Essa é apenas uma das pegadinhas do governo
por Rodrigo Martins
Não, a peça não usa como exemplo a trajetória de Michel Temer, aposentado aos 55 anos como procurador do Estado de São Paulo. Hoje, ele tem direito a uma remuneração mensal de 45 mil reais, informa o Portal da Transparência do governo paulista.
Como o valor excede o teto do funcionalismo, ele recebeu 22,1 mil reais líquidos em outubro. O peemedebista não corre, porém, o risco de perder tais privilégios. As mudanças só valerão para quem entrar no serviço público após a aprovação da reforma.
Com um custo estimado em 20 milhões de reais, a nova campanha publicitária, produzida pelas três agências que atendem o Planalto (Calia, Artplan e NBS), aponta para os supostos privilégios que os servidores teriam na comparação com os trabalhadores da iniciativa privada.
A propaganda ignora as diversas alterações nas regras de aposentadoria do funcionalismo desde a promulgação da Constituição de 1988.
Quem entrou no serviço público a partir de 2013, quando passou a vigorar a última mudança, já está submetido a exigências de idade mínima e tempo de contribuição, além de não poder receber benefícios superiores ao teto do Regime Geral de Previdência Social, hoje fixado em 5.531 reais. Aqueles que desejam uma aposentadoria maior precisam contribuir adicionalmente para um fundo complementar de previdência.
“A reforma do setor público está feita. Dentro de 25 ou 30 anos não haverá mais servidores em regimes anteriores, recebendo benefícios elevados, como é o caso de Temer”, afirma Floriano Martins de Sá Neto, presidente da Anfip, a associação nacional dos auditores fiscais.
De acordo com as projeções do próprio governo, incluídas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2017, atualmente o déficit do Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores corresponde a 1,1% do PIB. Em 2060, esse porcentual estará reduzido a 0,4%. “De forma ardilosa, o governo parece querer jogar a população contra o servidor, ora convertido no grande vilão da Previdência.”
No primeiro semestre, Temer despejou mais de 100 milhões de reais para tentar convencer a população dos benefícios das mudanças. Não logrou êxito. Oito em cada dez brasileiros rejeitam a reforma da Previdência proposta pelo governo, atesta a última rodada da pesquisa CUT/Vox Populi.
Diante da resistência dos parlamentares em aprovar o impopular pacote a menos de um ano das eleições, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, aceitou um projeto mais enxuto, capaz de poupar 480 bilhões de reais em dez anos, segundo os cálculos palacianos, 60% da economia prevista no texto original.
Os números parecem tão suspeitos quanto o empenho do governo em aprovar, no Congresso, a Medida Provisória nº 795/17, que reduz impostos para as petroleiras até 2040 e geraria renúncia fiscal de 40 bilhões por ano, ou 1 trilhão em 25 anos, segundo um estudo da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados.
“Isso representa mais de 20 anos da suposta economia que seria obtida com a reforma da Previdência”, afirma Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp. O especialista alerta para o risco de as receitas previdenciárias despencarem nos próximos anos.
Primeiro, em decorrência dos precários contratos autorizados pela reforma trabalhista, que devem reduzir a massa salarial sobre a qual incidem as contribuições para o INSS. Em segundo lugar, pelas exigências impostas ao trabalhador para se aposentar. As dificuldades são tantas que boa parte dos brasileiros deve migrar para a previdência privada.
Não bastasse, Fagnani aponta uma série de pegadinhas na nova proposta de reforma. Um exemplo: o tempo mínimo de contribuição para os trabalhadores da iniciativa privada continua a ser de 15 anos. No entanto, quem se aposentar logo após cumprir essa exigência terá direito a apenas 60% do benefício integral, enquanto hoje receberia 85%. Dessa forma, um trabalhador com rendimento médio de dois salários mínimos (1.874 reais) ganhará 1.124 reais ao se aposentar após 15 anos de contribuição. Pelas regras atuais, ele receberia 1.592 reais.
Pela proposta do governo, haverá um aumento progressivo da idade mínima até 2038, quando será pré-requisito para a obtenção do benefício ter 65 anos, no caso dos homens, ou 62, para as mulheres. Há, porém, uma armadilha, convenientemente silenciada pela mídia, apoiadora da reforma desde o primeiro momento. A emenda aglutinativa em discussão cria uma espécie de gatilho, que permite ao governo elevar a idade mínima para a aposentadoria toda vez em que aumentar a expectativa de sobrevida dos brasileiros a partir dos 65 anos.
Entre 2015 e 2060, o IBGE projeta que a expectativa de sobrevida a partir dos 65 anos, em ambos os sexos, passará de 18,4 para 21,2 anos. “Isso significa que, a cada 15 anos, a idade mínima para se aposentar aumentará um ano automaticamente. É uma corrida de obstáculos, com o objetivo de dificultar ao máximo a concessão da aposentadoria”, resume Fagnani.
“Antes mesmo de chegarmos a 2038, é provável que o gatilho tenha sido acionado. Ou seja, aumentará em um ano a sobrevida na velhice e o brasileiro só poderá se aposentar aos 66 anos.”
Os formuladores da proposta de reforma frequentemente recorrem a comparações internacionais, notadamente com os países desenvolvidos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em sua maioria de alto nível de desenvolvimento social, para sugerir a mudança nos parâmetros da Previdência no Brasil.
No entanto, a expectativa de sobrevida dos brasileiros aos 65 anos é menor e a reforma introduz regras muito mais severas. Na Itália, a idade de referência para a aposentadoria dos homens é de 66 anos e, para as mulheres, é de 62. Isso não significa que os italianos não possam receber benefícios antes disso, desde que tenham contribuído por 15 anos e estejam dispostos a embolsar um valor menor.
Com idade de referência superior a 65 anos, Portugal e Suécia permitem a aposentadoria a partir dos 57 e 61 anos, respectivamente. Detalhe: em todas as essas nações, vigora o Estado de Bem-Estar Social. Os cidadãos não precisam pagar um centavo para ter acesso a escolas, hospitais e serviços de assistência ao idoso de qualidade, mantidos pelo governo.
“Quem se retira do mercado de trabalho antes da hora terá uma grande redução do benefício, que pode chegar a 50% do valor da aposentadoria integral. Mesmo assim, muitos cidadãos europeus optam por descansar mais cedo, como é o caso de mulheres que desejam dedicar-se mais à família na velhice”, observa Milko Matijascic, doutor em economia pela Unicamp e técnico de planejamento e pesquisa pelo Ipea.
“Pode até ser interessante estimular a aposentadoria precoce quando há um elevado índice de desemprego entre os mais jovens. Foi o que a Alemanha fez nos anos 1970, após a primeira crise do petróleo.”
No Brasil, mais de 28% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos estão desempregados, segundo o IBGE. O especialista adverte, porém, ser preciso vedar a possibilidade de o segurado continuar trabalhando, caso o País opte por essa estratégia, descartada pelo governo.
“Por aqui, o aposentado pode continuar trabalhando. Nos Estados Unidos, isso é proibido. Se um policial reformado continuar atuando com vigilância privada, ele corre o risco de perder o benefício. Essa restrição acaba por aumentar o número de vagas disponíveis para os mais jovens.”
A proposta do governo veda ainda a possibilidade de acumular aposentadoria e pensão por morte quando o valor total dos benefícios superar dois salários mínimos. O PSDB, que diz ter deixado a base de Temer, mas mantém três ministros no governo, manifestou objeção à rigidez da proposta. Propõe que o limite seja alargado para o teto previdenciário de 5.531 reais.Se deseja aprovar a reforma, o Planalto terá de ceder, alerta o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “Sem o PSDB, a gente sabe que é quase impossível chegar aos 308 votos necessários, se não é impossível.” Na quinta-feira 30, o parlamentar reconheceu a dificuldade de amealhar o apoio necessário para pautar o tema. “Não posso dar data porque não tem voto. Falta muito voto.”
Na Europa, muitos países proíbem a acumulação de benefícios, observa Matijascic. “A viúva deve escolher entre continuar recebendo a sua aposentadoria ou passar a receber a pensão pela morte do marido, caso esse benefício seja mais vantajoso.
No entanto, é preciso ponderar que o Brasil não oferece serviços públicos de qualidade à população”, emenda o especialista, pouco antes de lamentar a situação de penúria dos hospitais públicos, sobretudo no Rio de Janeiro, onde um homem de 63 anos morreu recentemente após cinco dias de espera por um exame. “Infelizmente, o Brasil está longe, muito longe do padrão de vida europeu. Se dificultar demais o acesso aos benefícios, o impacto social pode ser desastroso.”