Crédito a quem explora

Sem punição, bancos violam norma e emprestam dinheiro a fazendeiros da ‘lista suja’ do trabalho escravo

Instituições financeiras brasileiras ignoraram uma resolução do Banco Central e repassaram R$ 3,6 milhões a fazendeiros condenados por utilizar mão de obra escrava.  A constatação é resultado de uma investigação realizada pelo UOL ao longo de dois meses com base em dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e documentos inéditos. Entre as instituições que violaram a norma do CMN estão cooperativas de crédito, bancos privados e até o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social).

Esse valor, no entanto, pode ser maior porque os bancos que operam essas linhas de crédito, com exceção do BNDES, não têm a obrigação de divulgar os dados de suas operações.

Entre 2000 e 2016, 48,8 mil pessoas em condição análoga à escravidão foram resgatadas por fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego).

Os elementos que caracterizam o trabalho análogo à escravidão são condições degradantes de trabalho (violações à dignidade humana do trabalhador e riscos à sua saúde e vida), jornada exaustiva, trabalho forçado, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas ou psicológicas e servidão por dívida.

Desde o início dos anos 2000, uma das principais preocupações dos órgãos e entidades dedicados à erradicação do trabalho escravo tem sido estancar o fluxo de recursos financeiros a empregadores que utilizam esse tipo de mão de obra.

Em 2010, a resolução do Banco Central nº 3.876 proibiu que bancos públicos ou privados concedessem crédito rural a empregadores que constem no cadastro de pessoas e empresas condenadas administrativamente por utilizar mão de obra escrava.

O cadastro, também conhecido como “lista suja do trabalho escravo”, é uma relação com os nomes das pessoas físicas e jurídicas condenadas administrativamente em caráter final por utilizarem mão de obra em situação análoga à escravidão.

Pressionado por um inquérito aberto pelo MPT (Ministério Público do Trabalho), o Banco Central começou a fiscalizar o cumprimento da resolução em 2012, dois anos depois de ela entrar em vigor. A pedido dos procuradores, o BC elaborou um primeiro relatório que identificou nada menos que 24 operações suspeitas de terem violado a resolução. A resolução do CMN, contudo, não estipula punições.

À reportagem, o banco revelou que, das 24 operações suspeitas, 14 efetivamente violaram a norma que proibia as instituições financeiras de conceder empréstimos rurais a empregadores que estivessem na lista suja do trabalho escravo. Somadas, essas operações envolvem R$ 2,4 milhões. Outras dez operações foram avaliadas regulares pelo BC.

O UOL obteve uma cópia da relação das 24 operações consideradas suspeitas. Essa lista contém os nomes dos bancos, o CPF dos tomadores de empréstimos, a data em que a transação foi liberada, o valor dos contratos e a fonte dos recursos.

Apesar de ser extremamente detalhada, não é possível divulgar suas informações na íntegra porque o BC não revelou quais foram as 14 operações que violaram a norma alegando respeito ao sigilo bancário. Mesmo assim, a reportagem conseguiu dados sobre duas dessas operações irregulares. Elas beneficiaram dois irmãos que atuam no ramo da produção de café no interior do Espírito Santo.