“Eu não queria doação, eu queria um emprego. Tenho ensino médio e estou nessa fila”, afirma Creuza, uma das muitas mulheres em meio à multidão que, no último sábado antes do Natal, aguardavam as doações de marmitas, brinquedos e produtos de higiene pessoal que seriam distribuídas no Páteo do Colégio, no centro da capital paulista. Às 21h, antes mesmo que os voluntários chegassem com instruções, mais de cem pessoas já esperavam. Creuza estava acompanhada da família toda: a filha mais velha, que carregava um bebê de colo, a neta adolescente e um menino de seis anos.
Só Creuza e a neta aceitam ser fotografadas; a família não quer registros da situação. Há cerca de oito meses, eles perambulam pelas ruas de São Paulo. “Ficamos por aí. Já fiquei na rodoviária, no Páteo do Colégio. Tomamos banho no ‘chá do padre'”, referindo-se ao apelido do centro de acolhida do Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), que oferece diariamente à população de rua almoço, chá da tarde e banho de chuveiro na sede da rua Riachuelo, no Centro.
Creuza, que prefere não divulgar o sobrenome, conta que se viu obrigada a entregar a casa em que a família morava depois que perdeu o trabalho em um colégio e, sem renda, não conseguiu pagar o aluguel. “Não tenho como pagar. Já pedi Bolsa Família, pedi Bolsa Aluguel, não conseguimos nada”, lamenta. Relatos como o dela – de famílias desempregadas que perderam a moradia e passaram a viver nas ruas – são cada vez mais presentes na rotina das ONGs e instituições que prestam assistência à população de rua.
Os mais de dois anos de recessão profunda aumentaram a demanda pelos serviços sociais dessas instituições e, além disso, mudaram o perfil predominante nos atendimentos. “Hoje você vê muitas famílias que vão com a barraquinha para o meio da rua. Você percebe que são pessoas que teriam condições de trabalhar, mas perderam o emprego e entregaram a casa”, afirma Kaká Ferreira, 63 anos, fundador do Núcleo Assistencial Anjos da Noite, que há 27 anos distribui comida, roupas e ações de resgate de autoestima a quem dorme pelas ruas de São Paulo. É ele o idealizador da tradicional ceia de Natal para os moradores de rua no Páteo, que ele realiza há anos.
“A demanda aumentou muito desde o fim de 2015. Demorava três horas para distribuir 800 marmitas. Agora levo 40 minutos, e a quantidade de gente que vem desesperada atrás de comida é muito grande”, diz Kaká, que é servidor do Ministério da Agricultura há 40 anos. Semanalmente, ele dedica os sábados à noite a liderar um grupo de cerca de 60 voluntários que caminham por roteiros que, tradicionalmente, concentram grande parte da população de rua de São Paulo: praça da Sé, rua 25 de Março, Vale do Anhangabaú, rua Amaral Gurgel. O frei José Francisco, diretor-presidente do Sefras, ligado à Igreja Católica, diz que há um número expressivo de pessoas foram recentemente para a rua.
“Nos dez anos em que atuo nesse trabalho, este é o pior momento que vi”, diz. “Em todos os lugares você encontra barracas com famílias dentro. Não precisa ter muita sensibilidade para notar que essas pessoas estão por toda a cidade”.
Os dados mais recentes disponíveis, do censo realizado em São Paulo em 2015, contabiliza 15.906 pessoas em situação de rua na capital naquele ano. Quase o dobro de 2000, quando eram 8.706 pessoas. Para o diretor do Sefras, no entanto, o número é claramente subestimado. “Os próprios órgãos públicos com quem dialogamos, todos admitem que nas ruas de São Paulo existem mais de 20 mil pessoas, e esse número cresce.”
No Páteo do Colégio, ansiedade na distribuição de marmitas e brinquedos
A alta do desemprego reforça em todo o país a tendência que mais pessoas percam a moradia – as próprias pesquisas de desemprego têm sinalizado um aumento do desalento, em que mais pessoas pararam de procurar emprego e saíram do radar do IBGE. Apesar disso, não dá para dizer que a crise cause o aumento da população de rua, explica o sociólogo Gabriel Feltran, diretor científico do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e um dos organizadores do livro “Novas Faces da Vida nas Ruas”, que reúne pesquisas sobre o tema ao longo da última década.
Isso porque o fenômeno da população de rua responde a fatores além da economia: a atuação do crime organizado, a sazonalidade que atrai moradores de rua para determinadas áreas, ou o aumento das ações de assistência no fim do ano, que atrai moradores de outras regiões. “Não é que, quando aumenta o desemprego, mecanicamente aumenta a população de rua”, diz Feltran. “Aumenta a tendência, no país todo. Mas, por exemplo, se o crime estivesse dando muito dinheiro na periferia e o cara que perdeu o emprego formal consegue ser olheiro em uma ‘biqueira’, ele fica por lá mesmo”, diz.
Gladston de Andrade Figueiredo, secretário-executivo da Pastoral Nacional do Povo da Rua, diz que a crise deve levar mais famílias às ruas em todo o país, e a falta de dados é uma das barreiras ao diagnóstico preciso do problema. “As pesquisas do IBGE são feitas a partir do domicílios; como a população de rua não tem, fica de fora.”
Feltran, do CEM, cita outras influências da atuação do crime organizado sobre o comportamento da população de rua. Um exemplo é o Primeiro Comando da Capital (PCC), que desde os anos 2000 começou a regrar o comportamento dos usuários de crack na cidade, elevando a migração da periferia para o centro. “O moleque, por exemplo, não pode fumar pedra no meio da comunidade, e muitas vezes é expulso. E aí, após ser expulso de uma e outra favela, se endivida, e acaba indo parar no Centro”, exemplifica.
“Acompanhei várias pessoas que se viciaram no crack na periferia, na favela, mas que terminaram no Centro. Ninguém vai expulsar ele na cracolândia”, diz Feltran, que destaca a heterogeneidade do perfil do morador de rua.
Ele cita também casos de sofrimento psíquico e rompimento com a família, ou usuários em busca de mais assistência e tratamento, mais presentes no centro da cidade. Há também o aspecto itinerante de parte expressiva da população em situação de rua, que vive em um lugar e outro, atraída para regiões de maior circulação de turistas. “Há muitos que vivem assim”.
Reintegrar moradores de rua ficou mais difícil em meio à crise. “Este ano me assustou bastante. Foi muito mais difícil encaminhar para entrevistas nas empresas”, diz a engenheira civil Caroline Garcia Pinto, que em 2014 deixou seu antigo emprego como executiva de RH e voltou a morar na casa dos pais para realizar o sonho de criar Instituto Muda Vidas, dedicado a recolocar moradores de rua em vagas de emprego formal ou no empreendedorismo. “Hoje os moradores de rua estão competindo com pessoas qualificadas que perderam os empregos”, diz.
O aumento da demanda ocorre justamente em um momento de queda expressiva nas receitas das instituições. “Eu sempre brinco que nos momentos em que se demanda mais atendimento, caem as doações” afirma José Francisco, diretor-presidente do Sefras, que diz que os custos subiram 10% e a receita caiu 10% no ano passado, mesmo com o apoio da igreja, que responde por 20% da receita.
No Anjos da Noite, que sobrevive exclusivamente de doações e trabalho voluntário, Kaká estima queda de 60% nas doações no ano passado. Foi difícil até manter a tradição da ceia dos moradores de rua no Páteo do Colégio. “Pensei em revisar as metas e colocar só 500 panetones. Mas, no fim, conseguimos mais de 1.500”, comemora Kaká, que considerou a arrecadação satisfatória, motivada pelo espírito de solidariedade mais forte na época das festas de fim de ano. “O espírito da solidariedade nasce mais ou menos em 15 de dezembro e morre no Natal”, ironiza.
Lídia Broco, que coordenou os voluntários que passaram o sábado na cozinha preparando as marmitas, afirma que foram arrecadados 120 kg de frango, 30 kg de carne, 5 perus, 40 kg de feijão, 50 kg de arroz e 30 kg de mandioca. “Houve sábados em que tivemos que fazer vaquinha entre os voluntários para não deixar de sair”, diz.
No evento do Páteo do Colégio, a paulistana Edna Borges diz que o trabalho de instituições como o Anjos da Noite são um alívio em meio à rotina dura das ruas. Ela conta que passou a morar na rua desde que, desempregada no ano passado, perdeu o barraco em Taipas, na zona norte, e a tutela dos netos depois que e teve “problema com drogas” na família. “Não estou aqui porque sou egoísta nem nada, é uma coisa que acontece”, diz Edna, que se orgulha da experiência profissional que adquiriu como cuidadora de idosos.
“Era o meu sonho que realizei. Mas perdi o emprego, atrasei o aluguel e o Conselho Tutelar levou meus netos de 7 e 6 anos para um abrigo no Glicério”, diz Edna, que tem dormido em um dos muitos prédios ocupados no Centro, junto com o marido e a filha. “É mais seguro”. A preferência de Edna não é incomum entre os moradores de rua, diz Kaká, do Anjos da Noite. “Muitos preferem ficar na rua, porque em muitos albergues o morador de rua não pode entrar com as coisas dele, deixam na rua e o caminhão de lixo leva. Perdem o pouco que tem”, diz o fundador da ONG, para quem é fácil entender a vulnerabilidade das famílias. “Qualquer casa vagabunda em São Paulo custa R$ 600. Se a pessoa ganha um salário mínimo, vai pagar como?”, diz.
Depois do Páteo, a próxima parada dos voluntários no sábado à noite foi a rua 25 de Março, para onde estavam reservadas 250 marmitas. Lá, o grupo encontrou antigos conhecidos, como Pelé, que dorme dentro de uma carroça de sucata e é atendido pela ONG há mais de dez anos. Ou o Zé Maria, que mora dentro do concreto de um viaduto na rua Amaral Gurgel e tem relação de amizade com os voluntários. Ao ouvir chamarem seu nome por uma pequena fresta de concreto, despertou sorridente e recebeu a marmita em meio ao entulho e à sujeira.
Animadamente, contou a Chiquinho, voluntário que atende Zé Maria há mais de 12 anos, que agora tem a companhia de um gato de estimação. Na rua Bresser, perto da estação do metrô, dezenas de barracos improvisados já formam uma fila tão longa que parece uma comunidade. “Até o ano passado aqui não tinha nada disso”, diz o designer e voluntário Renato Broco, 22 anos.
As políticas públicas para a população em situação de rua no país tem sido “engolidas”, nos últimos anos, pelos programas de combate ao crack, diz Feltran, do CEM. “Todo recurso do Centro de Referência Especializado de Assistência Social — População de Rua, por exemplo, faz parte do guarda-chuva de um programa de combate ao crack. Em termos de políticas públicas, o que se pressupõe? Que toda pessoa que está na rua é usuário de crack”, diz Feltran, que afirma que quando as políticas voltadas à população de rua focam no combate ao crack, a tendência é que se aumente a criminalização da vida dessas pessoas, e muitas outras fiquem de fora do radar.
Para o casos de famílias em situação de rua que devem estar crescendo em todo o país, diz Feltran, o melhor caminho são políticas chamadas de housing first, que dão prioridade a conseguir um lugar para essas famílias morarem, para que consigam estabelecer rotina e conseguir emprego. “Tem uma parte dos moradores de rua que estão lá por problemas sociais. Eles precisam ser protegidos, não criminalizados”, afirma.