A defasagem de 83% no reajuste da tabela do Imposto de Renda (IR) nos últimos 20 anos impõe a boa parte dos brasileiros uma situação inusitada. Muitos dos que pagam o imposto hoje não deveriam pagar. Isso porque, se aplicada a regra de correção da inflação do período, o piso inicial tributável, que está em R$ 1.903,98, subiria para R$ 3.460,50.
O cálculo, feito por entidades que fiscalizam de perto os números do governo, não é contestado pela Receita Federal (RF). “O que agrava ainda mais a condição do trabalhador, que acaba pagando imposto indevido. Em 1996, só recolhia IR quem ganhava acima de nove salários mínimos. Hoje, com praticamente dois salários, já se recolhe”, diz Cláudio Damasceno, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco).
E nada indica que vá haver alguma mudança. O Orçamento da União de 2017 trazia uma previsão de reajuste de 5% na tabela do IR, que teria efeito não só sobre a declaração de 2018, mas também sobre o recolhimento na fonte sobre salários e serviços feitos mensalmente já neste ano. Mas, diante do rombo nas contas do governo, especialistas acham praticamente impossível que isso aconteça.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, já declarou que “não há decisão tomada sobre o tema” e que qualquer medida que leve ao reajuste da tabela “incidirá sobre as receitas” do governo. E também não há nada que a Receita possa fazer neste caso. “A decisão de reajuste da tabela não é técnica. Não é da Receita. É, sim, da política econômica. A Receita executa a política fiscal definida pelo governo. Mas o governo é quem define”, explica Valter Aparecido Koppe, supervisor regional de IR da RF.
O fato é que o não reajuste só faz aumentar o bolo total de arrecadação do governo com o tributo. Isso porque anualmente, quando salários e serviços recebem ao menos a correção inflacionária, uma nova legião de contribuintes entra na categoria tributável. Tanto que o governo prevê que 28,3 milhões de pessoas entregarão a declaração este ano.
Em 2016, foram 27,9 milhões, que recolheram cerca de R$ 132,7 bilhões, o que representa cerca de 10% da arrecadação total do governo, nas contas da KPMG. “O que não é pouca coisa”, considera Roberto Haddad, sócio da área de tributos da multinacional.
Em seus cálculos, se o governo resolver aplicar 5% de reajuste este ano, isso implicaria uma queda de arrecadação de pelo menos R$ 6 bilhões em 2017, tendo como ano base 2016. Para se ter uma ideia de o que isso representaria no bolso do trabalhador, considerando que o rendimento médio do brasileiro é de R$ 2.043 por mês, segundo o último levantamento da Pnad (pesquisa por amostra por domicílio, do IBGE), se aplicada a tabela atual, sem reajuste, este contribuinte recolhe R$ 10,43 de IR mensalmente, ou R$ 125,10 ao ano. “Se ajustasse essa tabela em 5%, ele iria pagar R$ 3,29 ao mês, ou R$ 39,44 ao ano. Uma redução de 68,47%”, diz Haddad.
Mas, se considerada apenas a inflação do ano passado, de 6,28%, mesmo que o governo corrija a tabela em 5%, como previsto anteriormente, ainda seria insuficiente. “Se tem defasagem de 6,28%, o piso inicial de R$ 1.903,98, deveria subir para R$ 2.025,07, somente considerando o ano de 2016”, calcula Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor executivo de estudos e pesquisas da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). Porém, o executivo não acredita que o ajuste virá este ano. “Se quando a situação fiscal não era tão ruim, o governo enrolava e não reajustava corretamente, imagine agora”, avalia Oliveira.
Os especialistas lembram, no entanto, que nunca houve um consenso sobre a política de reajuste do IR e os governos já mudaram várias vezes as regras e a forma de aplicá-la de 1996 para cá.
A última alteração se deu em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, quando se estabeleceram percentuais diferenciados que variavam de 6,5%, que incidia sobre as duas primeiras faixas tributáveis, a 4,5%, para a última. “A média da correção acabou ficando em 5,6%”, diz Antônio Gil Franco, sócio da área de tributos da EY, que ressalta que mesmo o maior reajuste, de 6,5%, ficou abaixo da inflação, e que nenhuma faixa salarial foi compensada. “Mas quanto mais a pessoa ganha, menos vai perceber o impacto do desconto.”
Já na opinião de Daniel Nogueira, especialista em IR da Crowe Horwath, o não reajuste da tabela pode ser considerado um aumento de imposto indireto, feito de forma implícita. “E as pessoas não reclamam porque talvez nem saibam direito. Não tenham a percepção clara do significado disso”, saliente Nogueira. Ele lembra que em 1986 havia vários movimentos de ‘Diga não ao Leão’ – o animal que simbolizava o IR na época. “As pessoas reivindicavam o fim do aumento abusivo de impostos disfarçados porque tinham noção mais clara do que estava ocorrendo.”