O brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, diz estar preocupado com a possibilidade de o Brasil voltar a ter a fome como um de seus problemas crônicos e estruturais.
“Se o Brasil não conseguir retomar o crescimento econômico, gerar empregos de qualidade e ter um programa de segurança alimentar voltado especificamente para as zonas mais deprimidas, nós podemos, infelizmente, voltar a fazer parte do Mapa da Fome da FAO”, alerta, em entrevista por e-mail ao UOL, da sede mundial da instituição, em Roma (Itália).
O Mapa da Fome é um estudo elaborado desde 1990 pela FAO, principal órgão internacional de incentivo a políticas de combate à fome e à promoção do alimento. O mapa reúne e analisa dados sobre a situação da segurança alimentar da população mundial, fazendo diagnósticos por regiões e países.
O Brasil saiu da “lista negra da fome” em 2014. Pela primeira vez, segundo a FAO, número inferior a 5% dos brasileiros se alimentava com menos calorias diárias que o recomendado. Um país com mais de 5% da população subalimentada entra no mapa. Em 2014, as pessoas com restrição alimentar severa no Brasil representavam 3% da população.
No mundo, de 2015 para 2016, a fome cresceu, pressionada por conflitos armados e crise econômica: são 815 milhões de pessoas vivendo com fome, segundo a instituição.
Na entrevista a seguir, Graziano, que é um dos idealizadores do programa Fome Zero, defende que “é preciso tornar a questão da fome um problema político para poder ser objeto de políticas públicas”.
Para além da teoria, o chefe da FAO mostra que a fome no Brasil tem hoje um perfil preciso, com nome feminino: “A cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meiaidade, com muitas crianças e que vive no meio rural. Em geral, o marido migra e não a leva, resultando em grande parte no abandono da família”.
Essa mulher e essas crianças precisam de apoio, elas estão com fome, diz.
UOL – O Banco Mundial calcula que cerca de 28,6 milhões de brasileiros saíram da pobreza entre 2004 e 2014, mas também avalia que, em 2016, entre 2,5 milhões e 3,6 milhões de pessoas voltaram a viver abaixo do nível de pobreza. Em 2017, as expectativas também são ruins. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome. Podemos voltar a ser um país em que a fome e a miséria sejam novamente assustadores? Regredimos em termos alimentares?
José Graziano da Silva – Não vou entrar nos méritos dos números do Banco Mundial, em torno dos quais há muita controvérsia. Mas é importante entender que essa linha imaginária que separa a pobreza extrema dos chamados “não pobres” possui uma grande flutuação. As pessoas que estão abaixo dessa linha normalmente são os desempregados, são os que fazem trabalhos aqui e ali, sem ocupação formal, são os que têm uma família numerosa e vivem em uma região muito pobre. Esse é um ponto importante: a pobreza não é um atributo individual –é um atributo coletivo. Quando nos referimos à pobreza, devemos considerar uma região pobre, que é desprovida de acessos a serviços públicos, por exemplo, de saúde, educação de mínima qualidade.
Voltando ao ponto: quando há uma crise econômica, muitas pessoas começam a mover-se para a linha abaixo da pobreza. É uma linha tênue, principalmente em razão do emprego temporário: quando a pessoa consegue o emprego, passa para cima da linha; quando perde o emprego, retorna para baixo da linha. Isso acontece muito entre os trabalhadores rurais volantes, por exemplo. Quando há uma safra boa, garante-se o emprego por seis a oito meses no ano, e então os trabalhadores rurais temporários sobem para cima da linha. Quando a safra é ruim, reduzida no tempo com menos meses de trabalho, passam para baixo da linha. A flutuação dessa população em torno da linha da pobreza é muito grande.
Nós estimamos que, seguramente, esses 2,5 a 3,6 milhões que voltaram para baixo da linha da pobreza sejam parte dessa população flutuante. Esse número deve ser ainda maior, pelo menos o dobro ao longo do ano. Esse contingente não conseguiu vencer definitivamente o tema da pobreza extrema. E, quando falamos de pobreza extrema, falamos de uma identidade com a fome, porque a pobreza extrema é medida em função do acesso aos alimentos. As pessoas ganham uma quantidade de dinheiro que não lhes permite comprar o mínimo necessário para a sobrevivência. Então as duas medidas estão diretamente associadas uma com a outra. Acho que, se o Brasil não conseguir retomar o crescimento econômico, gerar empregos de qualidade e ter um programa de segurança alimentar voltado especificamente para as zonas mais deprimidas, nós podemos, infelizmente, voltar a fazer parte do Mapa da Fome da FAO.
A fome é relacionada com fatores climáticos, como a falta de chuva em regiões áridas e semiáridas, à má distribuição de terras (problema para a reforma agrária) e à concentração de renda nas mãos de poucos. Qual é a especificidade da fome no Brasil, o que a motiva historicamente?
O Brasil tem uma grande diversidade climática em que há região semiárida no sertão do Nordeste, mas não é apenas lá: o Fome Zero também encontrou fome na Amazônia quase tão grave quanto no Nordeste. Não se pode pensar que uma população que está na beira do rio Amazonas desfrute necessariamente de uma dieta rica e saudável. Esse contingente possui uma série de deficiências nutricionais. A fome tem muitas caras, como costumo dizer. A cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meia-idade, com muitas crianças e que vive no meio rural. Em geral, o marido migra e não a leva, resultando em grande parte no abandono da família.
Essa mulher, com muitos filhos, já de uma idade mediana e que foi abandonada, tem de ser beneficiária de mecanismo de proteção social –senão, jamais irá deixar tal condição, assim como os seus filhos. Essa é a geração que está sendo comprometida pela ausência de políticas sociais. Então, por mais deficiências que possam ter programas de transferência de renda –e que geralmente não têm, pois são facilmente corrigidos–, não se justifica deixar sem um mínimo atendimento pessoas que não têm condições de ter acesso à alimentação.
Historicamente, Josué de Castro [1908-73, geógrafo brasileiro que revolucionou estudos da fome, revelando seu caráter e motivação políticas] mostrava que a fome na Zona da Mata –que foi seu grande de trabalho de pesquisa e que era a região rica do Nordeste– era tão intensa quanto no sertão nordestino, que tem a fome “endêmica” em função dos impactos da seca. E aí é importante ressaltar: não podemos evitar a seca, mas podemos evitar que a seca se transforme em fome. Só se faz isso com política de segurança alimentar, que contempla a questão do acesso aos alimentos nos momentos de escassez por meio de programas como a transferência de renda.
O geógrafo Josué de Castro, que o senhor citou, foi um dos precursores dos estudos vinculando diretamente a fome com a questão política, isto é, de que a fome existe e continua existindo por falta de intervenção da política, ela é politicamente motivada, não se passa fome porque se quer. A fome, no Brasil, a miséria, interessa a alguém no país? Se sim, a quem? Por quê?
A fome, no Brasil, interessa a todos os brasileiros. O orgulho de ter um país fora do Mapa da Fome não tem preço. Ninguém quer ter gente próxima com fome! A tendência é esconder, negar a existência da fome. Josué de Castro também ressaltava isso: ninguém tem orgulho de ter fome. Então não é a quem interessa a fome: é preciso tornar a questão da fome um problema político para poder ser objeto de políticas públicas. É responsabilidade do Estado garantir uma alimentação adequada e saudável. O direito à alimentação na Constituição brasileira tem o mesmo nível do direito à vida. Portanto, compete ao Estado amparar esse direito.
Temos hoje, no mundo, tecnologia suficiente para multiplicar a produção de alimentos, mas ainda se passa fome. Como o senhor analisa o fenômeno da fome e da miséria no mundo? Como se combate? Os países ditos desenvolvidos têm responsabilidade na lógica da exclusão?
O problema não é falta da produção de alimentos, exceto em pequenos bolsões, principalmente na África subsaariana e nos pequenos países insulares. A questão passa necessariamente pelo acesso: as pessoas não possuem renda suficiente para ter uma alimentação saudável e de qualidade. Isso foi atestado de acordo com os dados do último relatório da ONU [Organização das Nações Unidas] sobre Segurança Alimentar e Nutrição — liderado pela FAO, pelo Programa Mundial de Alimentos e pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola e que teve nessa edição a participação do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] e da Organização Mundial da Saúde. Nesse documento, verificou-se que houve aumento da fome no último ano após longo período de constante declínio (de 777 milhões em 2015 para 815 milhões em 2016) e que esse aumento está estreitamente relacionado à escalada de conflitos, principalmente na África, e é resultado dos impactos da mudança climática, como secas e inundações.
Mas, retomando a questão de acesso, esse aumento da fome é igualmente fruto da recessão econômica aguda de vários países, em que os níveis de desemprego passam a ser responsáveis pela redução da quantidade e da qualidade de alimentos que as pessoas consomem. Esse desequilíbrio deixa latente que há várias formas de má nutrição a ser combatidas. Entre elas, destaco duas que afetam particularmente as crianças: em primeiro lugar, há a má nutrição que ocorre em função da deficiência de micronutrientes, que compromete não apenas o desenvolvimento motor e físico, mas também o desenvolvimento mental. São consequências desastrosas, que podem comprometer toda uma geração. Em segundo lugar, há a obesidade, que preocupa o mundo todo, afetando indistintamente países pobres e ricos. Também aqui, vamos perder uma geração se continuarmos aceitando a obesidade sem uma intervenção pública. A obesidade é um problema público, porque é um problema de saúde, é um problema de nutrição. E isso também está dentro do mandato da FAO.
O governo Michel Temer (PMDB) tem contemplado interesses de ruralistas, com perdão de dívidas, portaria que flexibiliza o que é trabalho escravo [suspensa liminarmente pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que a julgará em definitivo]. Qual a sua opinião a respeito?
Não me manifestarei especificamente sobre o governo Temer. Minha posição de funcionário internacional me proíbe de fazer qualquer avaliação sobre um dos Estados-membros e de suas políticas internas. O que posso dizer é que sim, há, em geral, uma relação direta entre programas sociais e segurança alimentar.
Na América Latina, os avanços registrados no combate à fome e à má nutrição se devem, em grande parte, às políticas sociais que possibilitaram redistribuir os recursos arrecadados pelos governos em favor dos mais pobres –entre elas, a transferência de renda e o aumento do salário mínimo.
No caso brasileiro, cito em particular a política de aposentadoria rural, que foi muito importante e ainda é no Nordeste. Quando isso se inverte, os resultados são o retorno da miséria e da fome, o aumento da criminalidade e outras coisas que vemos cotidianamente.
A força de ideias simples e econômicas, como a colocação de cisternas contra a seca no semiárido brasileiro, programa do governo Dilma Rousseff (PT) premiado internacionalmente pela ONU, mostra que combater a raiz do problema custa pouco. O senhor poderia comentar esse programa e apontar outras soluções criativas e simples que trazem mudança efetiva para a população, combatendo pobreza, miséria e fome?
O programa das cisternas, na verdade, começou muito antes do governo Dilma. Era um programa levado a cabo por centenas de organizações governamentais do Nordeste em torno da Articulação do Semiárido Brasileiro, a ASA, desde o final dos anos 1990. Essas ONGs se dedicavam à capacitação das famílias para a produção e construção de cisternas na região do semiárido nordestino. Esse programa foi adotado pelo Fome Zero, que incorporou também outras propostas que apresentavam soluções criativas. Cito, por exemplo, os restaurantes populares de Belo Horizonte, a compra de produtos da agricultura familiar inicialmente implantada pela Prefeitura de São Paulo durante a primeira gestão petista de Luiza Erundina [1989-93], a central de abastecimento de Campinas [interior paulista] e outras tantas iniciativas compiladas e formatadas que passaram a ser multiplicadas com o apoio financeiro e técnico do governo federal.
As cisternas se tornaram parte das políticas públicas por meio de uma iniciativa da sociedade civil nordestina e hoje esse é um programa que a FAO está ajudando a levar a outros países do mundo que possuem regiões semiáridas. A FAO é uma das agências hoje credenciadas para ajudar os países na elaboração de projetos para o Fundo Verde da ONU para o Clima, e nos projetos que elaboramos por meio desse fundo nós incluímos sempre um componente do programa brasileiro das cisternas.
Muitas vezes falamos de água, mas esquecemos da água que usamos para beber. Falamos da água para uso na irrigação e esquecemos frequentemente da água potável, em especial para moradores das zonas rurais, que é vital: se não há água potável, não há segurança alimentar. A água é um elemento fundamental. Sem a água potável, aparecem várias doenças que agravam sobremaneira o problema alimentar no campo.
O agronegócio, modelo em grande parte exportador e baseado em monocultura e grandes propriedades, a exemplo das antigas plantations do período colonial, é um modelo correto de desenvolvimento sustentável, humano, das terras férteis? Como ficam as famílias? Como balancear necessidades?
Acredito que, para a FAO, a agricultura familiar e o agronegócio podem, juntos, contribuir muito na produção de alimentos. Existe espaço para incrementar a produtividade nos dois modelos, que podem se beneficiar de boas práticas de manejo de solo, de novas tecnologias e de apoio a políticas sustentáveis. Necessitamos mobilizar agricultores engajados e construir políticas adequadas para cumprir tal objetivo.
Não podemos pensar em apenas um modelo de agricultura. Há complementariedade entre a agricultura familiar e o agronegócio. Ambos são importantes, não são excludentes. É possível falar em colaboração nas áreas de transferência de tecnologia, empregos, logística e muitas outras. Basta administrar adequadamente o orçamento e as políticas públicas para que ambas as modalidades sejam contempladas.
O movimento de agricultura urbana, do tipo Hortelões Urbanos, hoje em voga em algumas grandes cidades, inclusive brasileiras, como São Paulo, deve ser ampliado? Ocupar terrenos baldios, margens de rios, praças, pequenos espaços urbanos com projetos agrícolas, destinados a alimentar moradores pobres e demais pessoas é uma forma de combater desigualdades, criar empregos e alimentar mais gente? Como a FAO avalia a agricultura urbana?
O tema da agricultura urbana não é importante apenas para a FAO. Ele também se insere no contexto da nova agenda urbana que as Nações Unidas adotaram durante a 3ª Conferência da UN-Habitat no ano passado, em Quito. Trata-se de um amplo documento de como as cidades podem e devem ser desenvolvidas no âmbito dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Os países se comprometeram a “promover a integração da segurança alimentar e necessidades nutricionais dos moradores urbanos, especialmente dos pobres, no planejamento urbano e territorial com vistas a acabar com a fome e a desnutrição” e a “coordenar políticas sustentáveis de segurança alimentar e agricultura nas áreas urbanas, periurbanas [em torno das cidades] e rurais, a fim de facilitar a produção, armazenamento, transporte e comercialização de alimentos aos consumidores de forma apropriada e acessível e reduzir perdas, e para evitar e reutilizar o desperdício de alimentos”.
Nota-se, pelo texto, vários dos temas muito caros à nossa organização: nutrição, perdas e desperdícios alimentares, sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis. Acredito que não é possível concluir o ciclo de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis sem envolver as cidades.
Como uma organização internacional, como a FAO, avalia a movimentação nacionalista no mundo, com a ameaça de multiplicação de muros e barreiras à circulação livre, combate a refugiados? Quais as consequências dessa posição para os projetos apoiados pela FAO?
A migração sempre foi um processo essencial para o desenvolvimento da humanidade e é fonte de múltiplos benefícios econômicos e culturais para os países de origem, trânsito e destino. Mas, infelizmente, mais e mais pessoas migram porque não têm a opção de ficar em suas casas e em suas terras. Nesse ano, a FAO dedicou o Dia Mundial da Alimentação à relação entre migração, agricultura e desenvolvimento rural, com a intenção de abordar as causas profundas da migração, como pobreza, insegurança alimentar, desigualdade, desemprego e falta de proteção social. Para salvar vidas, devemos reconstruir o ambiente em que as pessoas vivem, reforçando sua capacidade de resiliência e garantindo seus meios de subsistência. E oferecer-lhes a possibilidade de um modo digno de vida. A migração é uma questão de escolha.
Em São Paulo, polêmica recente envolveu a prefeitura ao anunciar a intenção de distribuir a farinata, composto feito de alimentos prestes a vencer, para crianças e pobres em geral. O senhor tem uma opinião a respeito de iniciativas como essa? A gestão do prefeito João Doria Jr. [PSDB] chegou inclusive a comparar a farinata à multimistura de Zilda Arns [1934-2010, médica que atuou contra a desnutrição no Brasil, criadora da Pastoral da Criança], utilizada em casos de restrição severa. É possível fazer essa comparação? A propósito, compostos alimentares assim se tornaram obsoletos?
Como já disse, não posso comentar situações de política interna de nenhum Estado-membro. Mas posso afirmar que tive a oportunidade de trabalhar com Zilda Arns e pude ver a distribuição da mistura que a Pastoral da Criança levava às famílias mais carentes. Essa distribuição era feita em situações muito específicas, de maneira similar de como era feito o soro para recuperação das crianças em estado nutricional extremo. Era um produto destinado a ter um efeito curativo, médico, aplicável em um estado em que não havia como levar as crianças das áreas rurais a um hospital ou a um posto de saúde para que tivessem um melhor atendimento. Não se pode generalizar. Zilda Arns nunca recomendou a multimistura distribuída pela Pastoral como substituta de alimentos. A alimentação não pode ser vista apenas pela quantidade de proteínas e calorias que uma pessoa consome, mas é um tema cultural e, principalmente, falar em alimentação saudável e digna tem o elemento da dignidade da pessoa humana. Não é simplesmente para satisfazer as suas necessidades biológicas: é necessário que ela tenha o direito de ter o acesso à alimentação.
Qual a sua missão particular, sua batalha contra a fome e a miséria? Ao final do seu segundo mandato como presidente, em 2019, o que faria o senhor se sentir com missão cumprida? Aquilo com que você sonhou quando era criança se realizou?
Meu sonho está longe de ser realizado. Não acredito que vá terminar meu mandato da FAO com essa missão cumprida. Eu simplesmente ajudei a reestruturar a organização e colocá-la de volta no caminho do combate à fome e à má nutrição como prioridades absolutas do nosso trabalho. Há muito o que fazer, e certamente meu sucessor se encarregará também de colocar o tijolinho a mais nessa construção que estamos fazendo. Essa é uma construção coletiva e não individual.
A FAO pode fazer muito pouco pelo combate à fome dentro de suas limitações de uma agência que assessora os países. Pode, por exemplo, ajudar, orientar, mas quem tem de fazer, implementar os programas, são os Estados-membros. Se eles não tomarem a responsabilidade de implantar uma estratégia de segurança alimentar, a fome não acaba. E é importante entender isso: uma política de segurança alimentar é muito mais do que uma política de erradicação da fome.
O Brasil erradicou a fome, mas isso é só o começo, é a condição necessária. A condição suficiente é ter uma estratégia permanente de segurança alimentar, com programas concretos para assegurar que a fome não retorne, ainda que sob uma condição de seca ou de crise econômica.
O senhor foi um dos responsáveis pela implementação do programa Fome Zero, no começo dos anos 2000, bandeira principal do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Olhando dos dias de hoje, qual foi o grande benefício trazido pelo programa? Houve um legado? O que deixou possivelmente de realizar?
O grande legado do Fome Zero foi ter aberto caminho para erradicar a fome no Brasil e também para desconectar o problema da fome da simples produção de alimentos. O Brasil sempre foi um grande produtor de alimentos e era difícil de aceitar que um país que era o líder mundial de exportação de carnes e cereais pudesse ter fome. O Fome Zero mostrou que o problema é que as pessoas não tinham acesso porque não tinham dinheiro para comprar os alimentos dos quais necessitavam. Isso porque não tinham emprego e emprego de boa qualidade, ou ganhavam salários muito baixos. Esta foi a perspectiva do Fome Zero: tornar uma série de programas sociais –alguns deles já existentes na época– em políticas públicas que geraram uma estratégia de segurança alimentar.
Considerando o Fome Zero como primeiro passo, e com outras medidas fundamentais, como o aumento do salário mínimo e a geração de mais de 10 milhões de empregos formais, o governo Lula pôde livrar quase 40 milhões de brasileiros, que deixaram a condição de pobreza extrema. Tudo isso contribuiu para melhorar o acesso aos alimentos, além da criação de estruturas próprias, como o restaurante popular, as centrais de abastecimento, programa de compra de produtos da agricultura familiar para a alimentação escolar. Ou seja, há um conjunto de políticas que se articularam em torno de um eixo, que era acabar com a fome. Não se tratava apenas de erradicar a fome, mas de erradicar a fome e também todas as formas de má nutrição, como diz o objetivo número 2 de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas.
É claro que o programa começou muito frágil para a dimensão da questão. Houve muitos percalços administrativos, a maior parte deles relacionados ao ineditismo de um ministério dedicado à segurança alimentar [o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, criado em 2004). Creio ter faltado a outras instâncias do governo, além da federal, tomarem o programa como seu, [porque] por distintas razões ele não foi devidamente adotado nas esferas estadual e municipal.