Disparidade entre pobres e ricos cresce no mundo, mas ganha contorno preocupante no Brasil por causa da recessão; para combatê-la, especialista pede fortalecimento de programas sociaisO avanço da desigualdade social é mais um empecilho para a recuperação econômica, afirmou Marcelo Neri, diretor da FGV Social. Isso porque as pessoas mais pobres gastam mais e, assim, estimulam a atividade pelo lado do consumo.

“Quando se coloca mais recursos na parte de baixo da pirâmide, há um apoio maior para o crescimento. Mas não é isso que estamos vendo”, afirmou o especialista.

Ele ressaltou que o Bolsa Família, um dos principais programas de transferência de renda do País, não foi reajustado entre 2014 e 2016, o que intensificou o problema.

No ano passado, a desigualdade cresceu pela primeira vez desde 1993. Calculado pela FGV Social, o índice Gini chegou a 0,523 em 2016, uma alta de 1,7% na comparação com 2015.

Além de causa, a piora do índice também é consequência da crise econômica, tendo como principais causadores a inflação e o aumento do desemprego, apontou Neri.

Ele também comparou a abordagem do governo nessa e nas últimas crises. “Em 1999 e 2003, tivemos investimento social, o que facilitou a retomada. Dessa vez, não vemos esse tipo de aporte, o que deve complicar tudo.”

Sobre as medidas propostas pelo governo federal, Neri disse que ajustes fiscais, como a reforma previdenciária, são “necessários”, mas devem poupar os mais pobres.

O especialista indicou ainda que a disparidade não deve diminuir nos próximos anos. “O tombo foi muito grande em 2016 e não vejo ações sendo tomadas para mudar essa trajetória”, justificou.

Problema mundial

A desigualdade também é vista em escala global. Divulgado no começo deste ano, o relatório “Uma economia a serviço dos 99%”, da ONG Oxfam, mostrou que oito homens possuem a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas, metade da população do planeta.

Em grande parte, esse fenômeno se deve a um crescimento maior do patrimônio dos mais ricos, enquanto que parcela considerável da população ainda sofre os efeitos da crise econômica de 2008, que fez a taxa de desemprego avançar e a renda média diminuir em vários países.

Um dos destaques do renomado livro O Capital no Século XXI, do economista francês Thomas Pikkety, foi que o rendimento do trabalho é inferior ao retorno do capital, o que ajuda a explicar o distanciamento dos ricos.

Outro fator que colabora para o aumento da desigualdade é a transformação do mercado de trabalho. “Temos carreiras desaparecendo e um grande avanço da automação. Nesse cenário, o emprego assalariado recua e o emprego eventual cresce”, afirmou Octavio de Barros, diretor executivo do Instituto República.

O estudo Um futuro que funciona, apresentado em janeiro pela consultoria McKinsey, projetou que 50% dos empregos podem ser automatizados durante as próximas cinco décadas no Brasil. A análise indicou que uma substituição semelhante deve acontecer em todos os continentes e setores da economia.

A tendência é que o avanço das máquinas no mercado de trabalho traga ganhos de produtividade e um crescimento econômico maior, mas também acentue as perdas de renda e o aumento do desemprego no mundo.

Para enfrentar esse paradoxo, Barros e a McKinsey defenderam o fortalecimento de programas sociais. Uma das soluções citadas por ambos, a renda básica, já está sendo testada na Finlândia e deve aparecer em mais países ainda nesta década.

“Existe uma espécie de consenso, principalmente em nações desenvolvidas, de que esse projeto será necessário para controlar a desigualdade”, disse Barros. Em resumo, a renda básica estabelece a distribuição de dinheiro, pelo estado, sem a exigência de uma contrapartida da população que recebe os recursos.

Complexidade

Sobre a situação brasileira, o entrevistado defendeu a manutenção e o aperfeiçoamento do Bolsa Família. “O programa tem uma bela história de sucesso e não pode ser abandonado”, elogiou Barros.

Ele ressaltou, porém, que o quadro econômico do País é complexo e pede mudanças estruturais. “Para sairmos dessa situação, precisaremos de alterações maiores, como uma reforma tributária, que estimulem o crescimento e, assim, reduzam a desigualdade.”