Um dos fatores mais importantes no cenário mundial nas últimas décadas foi o crescimento da participação da China no comércio internacional. Ao mesmo tempo em que isso ocorreu, a renda real das pessoas menos educadas tem diminuído nos EUA e na Europa e aumentado no Brasil e em outros países latino-americanos. Será que esses fatores estão interligados? Será que o avanço da China no comércio pode explicar a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a permanência do PT no poder por vários anos no Brasil?
O crescimento econômico e o aumento da participação da China no comércio internacional são impressionantes. Entre 1990 e 2014 a China cresceu cerca de 10% ao ano, tirando mais de 700 milhões de pessoas da pobreza. Nesse período, a participação da China na produção mundial de produtos manufaturados cresceu de 5% para 25% e sua parcela nas exportações mundiais aumentou de 2% para 19%.
A participação de produtos industriais chineses no total das importações americanas aumentou de 4,5% para 23%. Ao mesmo tempo, a parcela de trabalhadores americanos trabalhando na indústria reduziu-se de 20% para 8% nesse mesmo período. Além disso, os salários dos trabalhadores com ensino médio completo nos EUA caíram 10% em termos reais desde 1980 e sua participação no mercado de trabalho tem declinado desde então.
Estudos do economista David Autor, do MIT, mostram que o crescimento da importação de produtos da China realmente provocou perda de emprego e queda de salários nas regiões dos EUA que mais sofreram com a concorrência chinesa. Mais ainda, um artigo recente desse economista mostra que as regiões mais afetadas pelo aumento das importações da China aumentaram a parcela de votos para o candidato republicano na eleição de 2016 em comparação com a de 2000. Esse estudo mostra que os Estados de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia teriam escolhido Hillary Clinton ao invés de Donald Trump se as importações chinesas tivessem crescido 50% menos do que ocorreu na realidade. Assim, a candidata democrata teria obtido a maioria no colégio eleitoral americano.
Mas, o crescimento da China não foi o único fator por trás do aumento da desigualdade nos EUA. Por exemplo, a parcela da renda total apropriada pelas famílias 1% mais ricas aumentou de 10% para 22% entre 1979 e 2012, um processo bastante enfatizado por Thomas Piketty. Entre as outras famílias (99%), as principais explicações, além da China, foram o uso crescente de máquinas computadorizadas que estão substituindo os trabalhadores menos qualificados nas tarefas repetitivas e a desaceleração do crescimento educacional da população americana nas décadas de 80 e 90. Isso fez com que o diferencial de salários entre os americanos com nível superior e aqueles com ensino médio dobrasse nos últimos 30 anos.
No Brasil, ocorreu o contrário. Como sabemos, a desigualdade de renda declinou por aqui nos últimos tempos, assim como em outros países da América Latina. O salário médio dos trabalhadores com ensino médio caiu 6 % nos últimos 20 anos (assim como nos EUA), mas os salários dos trabalhadores com nível superior ficaram basicamente estagnados. O que aumentou bastante por aqui foram os salários dos trabalhadores menos qualificados, que subiram 38% entre 1992 e 2012 (ao contrário do que ocorreu nos EUA). Será a China também explica isso?
Assim como nos EUA, há vários fatores por trás da queda da desigualdade de renda no Brasil. Aqui também o aumento das importações da China provocou queda dos salários (relativos) nas regiões que mais sofreram com a concorrência chinesa e aumento de salários nas regiões que já exportavam para a China antes do choque. Mas, por aqui a China não foi o principal motivo para a redução da desigualdade.
Um estudo recente, por exemplo, mostra que os choques nos preços das commodities (causados em parte pela China) explicam apenas de 5 a 10% da queda da desigualdade de salários no Brasil entre 1991 e 2010. Na verdade, vários estudos mostram que o aumento do valor real do salário mínimo foi o principal fator que reduziu a desigualdade de renda no Brasil, tanto pelo seu efeito no mercado de trabalho como através das aposentadorias atreladas ao mínimo. O restante da queda pode ser explicado pelo grande aumento no número de pessoas com ensino médio, que provocou uma queda nos diferenciais de salários associados à educação no Brasil.
Em suma, enquanto nos EUA os salários dos menos qualificados está caindo e dos mais qualificados está crescendo, por aqui está acontecendo o contrário. Em ambos os casos, a China teve um papel importante, mas não primordial, para explicar esse processo. A educação teve um papel mais importante a desempenhar nos dois casos. Nos EUA, a tecnologia impactou bastante o mercado de trabalho, aumentando o diferencial de salários a favor dos trabalhadores qualificados. Aqui, como as firmas inovam pouco e os salários das pessoas com ensino superior estão estagnados, a desigualdade diminuiu principalmente devido aos aumentos do salário mínimo.
1- David Autor “A Note on the Effect of Rising Trade Exposure on the 2016 Presidential Election” Os dados sobre os EUA citados aqui são baseados em estudos desse autor.
2- Rodrigo Adão “Worker Heterogeneity, Wage Inequality and International Trade: Theory and Evidence from Brazil.”
Naercio Menezes Filho, professor titular – Cátedra IFB e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, é professor associado da FEA-USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e escreve mensalmente às sextas-feiras. naercioamf@insper.edu.br