Decisão do TRF-4, de Porto Alegre, vale para todo país e provoca polêmica entre especialistas
William Castanho / Anaïs Fernandes
A leitura é que a medida legitima a exploração de crianças e foi adotada de maneira equivocada, pois o Judiciário estaria extrapolando a sua competência no tema.
Decisões como essa, que interferem nas políticas públicas para menores, devem ser propostas pelo Executivo e validadas pelo Legislativo, e não definidas por meio de decisão judicial, defendem os advogados que atuam na área.
Na prática, os desembargadores proibiram, em julgamento no dia 9, o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) de fixar idade mínima para contagem dos anos de serviço e contribuição. O órgão foi notificado na quarta (18), e ainda cabe recurso.
A relatora do acórdão, desembargadora federal Salise Monteiro Sanchotene, diz que regras editadas para proteger crianças “não podem prejudicá-las nos casos em que, não obstante a proibição constitucional e legal, efetivamente, trabalharam durante a infância ou a adolescência”.
Ela afirma que o trabalho infantil é uma realidade no Brasil e lembra que, apesar das normas criadas para proteger os menores, as crianças são levadas pelos pais a auxiliar no sustento da família nos meios rural e urbano. “Além disso, há aquelas que laboram em meios artísticos e publicitários”, escreve Sanchotene.
PARA ESPECIALISTA, DECISÃO É INOPORTUNA E TERÁ ALCANCE RESTRITO
No Brasil, o trabalho só é legalmente reconhecido após os 16 anos de idade. Na condição de aprendiz, é autorizado a partir dos 14. Pela jurisprudência, entram nos cálculos de benefícios previdenciários atividades exercidas depois dos 12 anos.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o trabalho infantil atingia 1,8 milhão de crianças e adolescentes no Brasil em 2016, dos quais 998 mil em situação irregular. Essa conciliação em torno da proibição do trabalho das crianças e do reconhecimento do direito previdenciário leva a críticas à decisão.
“Os pais de atores mirins terão incentivo para colocar seus filhos nessa atividade”, diz Sérgio Firpo, professor de economia do Insper.
“De um lado, proíbe-se o trabalho infantil. De outro, legitima-se até atividade considerada ilegal, exploração. A decisão é, no mínimo, polêmica.”
Para ele, cabe ao Estado combater essa prática recorrente. “Se quiser incorporar o direito [de contagem do tempo], tem de tributar o empregador, punir civil e criminalmente. Tem de ir atrás daqueles que empregam ou empregaram crianças”, afirma Firpo.
O professor questiona também a determinação de dar ganho de causa para o Ministério Público Federal —a ação civil pública foi ajuizada em 2013— sem verificar os impactos financeiros da medida sobre o caixa da Previdência.
Para o professor de direito do trabalho da FGV/Eaesp Jorge Boucinhas, o ativismo judicial ocorre de forma inoportuna, no acórdão, em razão do momento político e econômico atual do Brasil.
“Essa decisão tem um potencial devastador para o Judiciário. Ela joga combustível na discussão sobre o seu limite na construção de políticas públicas.”
Segundo ele, em outro contexto histórico, a medida teria um impacto explosivo menor. “Se se tratasse de um caso isolado, a tutela do direito seria compatível”, diz. “A crítica é em relação à extensão da decisão neste momento.”
Boucinhas, contudo, diz que o julgado tem fundamentos válidos e não fere a Constituição.
Ele diz ainda que, embora o trabalho infantil seja um problema social, o número de beneficiários será restrito. Hoje, a regra de aposentadoria por tempo de contribuição exige 30 anos de serviço de mulheres e 35 de homens, mais a aplicação do fator previdenciário.
De acordo com Marcus Orione Gonçalves Correia, professor de seguridade social da USP, a decisão não deve ser tachada de ativismo judicial.
“Não há ativismo judicial, na medida em que o Supremo sempre trabalhou com a questão a partir de princípios. E um princípio básico: se você tem uma norma de proteção que protege o menor que só poderá começar a trabalhar a partir daquela idade, aquele que é protegido não pode ser prejudicado pelo descumprimento da norma de proteção.”
Para Renato Follador, consultor previdenciário, o impacto da medida nas contas da Previdência deve ser limitado.
“Quando se amplia o número de pessoas que podem incluir mais anos de trabalho no INSS, é óbvio que isso aumenta as despesas e, consequentemente, o déficit. Mas esse será também um universo limitado de pessoas. Não haverá explosão das contas públicas”, avalia.