Medo de represálias inibe queixas de assédio sexual no trabalho

Se nos EUA surgem mais e mais casos de assédio sexual em ambientes profissionais –como os que envolvem o produtor de cinema Harvey Weinstein e o ator Kevin Spacey–, no Brasil o número de processos desse tipo caiu 7,5% entre 2015 e 2016.

ANNA RANGEL
DE SÃO PAULO

Até setembro deste ano foram registradas 4.040 causas sobre assédio sexual no trabalho, considerando-se só a primeira instância. Para efeito de comparação, a queixa relacionada a problemas no aviso prévio rendeu 706 mil processos na Justiça trabalhista no mesmo período.

Os números mostram que o tema ainda é um tabu por aqui, analisa o consultor Renato Santos, que atua auxiliando empresas a criarem canais de denúncia anônima. “As pessoas não falam por medo de serem culpabilizadas ou até de represálias.”

Segundo Santos, os canais de denúncia, surgidos para coibir corrupção nas corporações, já recebem queixas de assédio e ajudam a identificar eventuais predadores. “O anonimato ajuda, já que as pessoas se sentem mais protegidas para falar.”

A lei só considera crime quando há chantagem de um superior sobre um subordinado para tentar obter vantagem sexual. “Se um colega constrange outro, em tese, não é crime. Mas pode render reparação por dano moral”, diz o advogado André Santos, sócio do Felsberg Advogados. Para isso, é fundamental juntar provas: e-mails, bilhetes, presentes e testemunhas.

Mas a maioria das companhias esbarra na resistência do chefe do agressor, que não quer demiti-lo se ele é eficiente, diz Angela Lucas, doutora em administração, que entrevistou 26 gestores de RH para sua tese sobre desigualdade de gênero no trabalho.

A arquiteta Cristina*, 32, precisou se afastar do escritório por alguns dias depois de denunciar um colega. “Funcionários me boicotaram por eu ter provocado a demissão do agressor.”

Ela conta que o assédio começou quando o homem passou a exigir que ela o cumprimentasse com beijos no rosto. Um dia, diante das negativas, ele a jogou em uma cadeira, forçando-a a se sentar, beijou-a e disse que “faria o que quisesse”. Após a demissão, descobriu-se que o agressor acessava sites pornográficos na empresa.

Para a advogada americana Anita Hill, da Universidade Brandeis (EUA), é comum as pessoas criarem desculpas para justificar atitudes abusivas. “Assim perpetua-se a violência contra a vítima. Há avanços, mas os mais poderosos não são punidos.”

Hill conhece o drama de perto: em 1991, acusou seu então chefe, o juiz da Suprema Corte Clarence Thomas, de assédio sexual.

Quando Thomas foi indicado ao posto máximo do Judiciário local, ela foi convocada a depor no Senado. Embora tenha impulsionado o debate sobre o tema no país, à época, pesquisas indicaram que 60% dos americanos desconfiavam do que ela dizia.

‘MUITO GOSTOSA’

Em muitos casos, nem as colegas acreditam, como aconteceu com a auxiliar administrativa Daniela*, 26. Depois de três anos ouvindo de um dos gestores que era “muito gostosa” e recebendo convites para sair, ela soube que ele tinha dito até para o dono da empresa que os dois tinham um caso. Mentira, mas ninguém a levou a sério.

“Não me demiti porque sairia sem nada. Mas tinha vergonha de ir trabalhar porque até as colegas estavam falando de mim”, conta.

Para a socióloga americana Amy Blackstone, da Universidade do Maine (EUA), o assédio está mais relacionado à tentativa de mostrar poder do que ao desejo sexual.

Com essa relação de poder, de acordo com a socióloga Eva Blay, da USP, fica mais fácil colocar em prática comportamentos já naturalizados, como o sexismo. “Precisamos discutir novos padrões de conduta. As pessoas devem abrir o jogo e mostrar que não acontece só com os outros”, afirma.

*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas

“Eu me culpei no início e não contei para ninguém”
Louise Arruda, 29, bibliotecária

Na minha primeira experiência profissional, fui alvo de assédio por parte de um colega de outra área, quando trabalhava em uma empresa pública em Brasília (DF).

No começo, ele tentou fazer amizade conversando sobre livros e bandas dos quais nos dois gostávamos. Disse que colocaria músicas em um pen drive para mim.

Quando trouxe o material, falou que queria me apresentar algumas canções e se sentou atrás de mim. Na hora, começou a massagear meu pescoço e meu peito, como se fosse me beijar. Fiquei paralisada, não sabia como fazer ele parar. Disse a ele que não havia dado abertura para esse tipo de comportamento e exigi que saísse dali.

Ele saiu. Bati a porta e comecei a chorar muito, me sentia impotente.

No começo, me culpava. Achava que, se ele sentiu abertura para avançar o sinal dessa forma, outros homens no escritório também poderiam fazer o mesmo.

Não consegui contar para ninguém. Me sentia suja, embora no fundo soubesse que a culpa não era minha. Hoje vejo como as vítimas tendem a se responsabilizar quando isso acontece.

Passei a fugir do agressor, e entrava em qualquer sala quando via que ele estava se aproximando, mesmo que estivesse no fundo do corredor.

Não denunciei porque não sabia, naquela época, que havia mecanismos para fazer isso, mesmo anonimamente.

Hoje, teria feito uma notificação à empresa.

Não pensei em me demitir porque, no fundo, sabia que não era culpada de nada.

Só contei para a minha família o que aconteceu quando, ao ouvir uma denúncia parecida de outra mulher, meu pai insinuou que ela teria dado sinais de que as investidas eram aceitáveis.

Expliquei o que havia acontecido comigo e perguntei se ele achava que eu também tinha dado abertura a esse colega inapropriado.

O assédio sexual pode acontecer com qualquer um, e tento mostrar que essa cultura de culpar a vítima, embora comum, é errada.

“Ataque me fez desistir de ser secretária”
Rosana Stanghi, 55, especialista em RH

Ele era muito respeitoso e amigo do meu pai. Por isso, sempre me senti muito segura naquela empresa. Até que um de seus três sócios me assediou sexualmente no escritório.No começo da carreira, quando ainda trabalhava como secretária executiva, assessorava o presidente de uma empresa pequena, mas com clientes de peso.

Esses proprietários não iam com frequência naquela unidade. Mas, um dia, eu e ele ficamos até mais tarde para adiantar as tarefas.

Ele foi até a sala onde eu estava, se debruçou sobre mim e tentou me beijar na boca. Fiquei atônita, porque não esperava aquilo. Não houve nenhuma insinuação antes disso, nada.

Ele dizia “vamos, vamos”, e me segurava. Eu tentava me esquivar, me defendendo com os braços.

Saí correndo e me tranquei em uma sala. Estava em choque, travada. Em 1993, não era comum denunciar essas coisas.

Contei o caso para minha mãe, mas não sabíamos nem o que fazer a respeito.

No caso das secretárias, era pior. Muitos achavam que era parte do trabalho ter um caso com a chefia. Tinha medo de ser considerada culpada.

Embora não tivesse falado sobre o assunto, menos de uma semana depois fui transferida para outro escritório da consultoria.

Nunca soube se o agressor contou o que aconteceu ao meu chefe, mas imagino que o caso teve influência na minha transferência.

Mudei de comportamento. Me tornei sisuda, não dava margem para proximidade. Procurei grandes empresas, porque achava que estaria mais protegida.

Essa vulnerabilidade me incentivou a deixar a profissão e investir em uma carreira em recursos humanos.

O LADO DA VÍTIMA
Maioria não reporta os casos de conduta inadequada

O que define assédio sexual, segundo a lei?

Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual usando uma condição de superioridade, hierárquica ou não, no emprego, no cargo ou na função.

O que fazer?

Dizer ‘não’ claramente ao assediador.

Se possível, conversar com colegas que testemunharam o fato ou que também já sofreram assédio da mesma pessoa.

Evitar interagir ou permanecer sozinho, sem testemunhas, com o agressor.

Anotar todas as violências sofridas, com data, horário, nome do agressor e das testemunhas e conteúdo das conversas.

Reunir provas, como bilhetes, e-mails ou presentes.

52% dos profissionais já sofreram assédio sexual ou moral no trabalho.

79,9% dos casos de assédio sexual aconteceram com mulheres.

39,6% afirmam que o assédio causou dificuldades na ascensão profissional.

87,5% não denunciaram o ocorrido.

39,4% não se manifestaram por medo de perder o emprego.

17,6% dos profissionais que denunciaram o assédio afirmaram ter sido perseguidos após o episódio.

Fonte: Vagas.com, em levantamento de 2015, feito on-line com 4.975 pessoas de todo o Brasil e Conselho Nacional do Ministério Público.