”Em um mundo onde há 210 milhões de adultos sem emprego, por que 152 milhões de crianças estão envolvidas em trabalho infantil?”
A pergunta do indiano Kailash Satyarthi – que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 2014, por sua luta contra o trabalho escravo e infantil – pode ser respondida de diversas formas. Cada uma delas capaz de provocar mais vergonha que a outra: porque crianças são mais facilmente exploradas, porque paga-se menos a crianças, porque não se garante condições para as famílias pobres. Vale para o mundo, mas também ao Brasil.
Kailash, que está no país, conversou com o blog. Nesta terça (12), celebra-se o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. Em todo o mundo, o número de crianças trabalhando caiu de 260 milhões para 152 milhões nos últimos 20 anos, de acordo com o Nobel da Paz. Há menos de 60 milhões delas fora da escola, em comparação às 130 milhões de antes. Mas a melhora ficou mais lenta agora. Segundo ele, ”nós não estamos investindo o suficiente na educação básica”.
Nas últimas três décadas, a organização criada por Kailash já resgatou mais de 80 mil crianças. Há um ano, ele foi a Brasília lançar a Campanha 100 Milhões por 100 Milhões, cujo objetivo é mobilizar 100 milhões de pessoas, principalmente jovens, para lutar pelos direitos de 100 milhões de crianças que vivem na extrema pobreza, trabalhando e sem acesso à educação.
O artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Crianças podem ajudar nas tarefas domésticas e aprender o ofício dos pais, desde que sua participação não seja fundamental para a manutenção econômica da família.
De acordo com o IBGE, 1,8 milhão de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalhavam no Brasil em 2016. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, por outro lado, tem afirmado que a conta não inclui o trabalho de subsistência e, portanto, o número deveria ser de 2,5 milhões. A diferença envolveria uma grande incidência de pessoas com menos de 13 anos.
Segue a entrevista:
Neste dia 12 de junho, celebramos o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. E apesar dos esforços internacionais, estamos longe da erradicação até mesmo das piores formas dessa exploração. No que estamos falhando?
Há 20 anos, o número de crianças trabalhadoras era de quase 260 milhões. Hoje, esse número diminuiu para 152 milhões. Fizemos progressos notáveis reduzindo o número de crianças no trabalho, o que resultou na alta da taxa de matrículas de crianças que estavam fora da escola primária. Atualmente, há menos de 60 milhões de crianças com idade primária fora da escola, em comparação com as 130 milhões há 20 anos.
Nos últimos anos, o progresso ficou mais devagar. As áreas mais desafiadoras são crianças entre 5 e 11 anos, trabalho infantil na agricultura e meninas. Isso significa que há uma séria falta de coordenação entre os setores de educação, trabalho e desenvolvimento nos níveis nacional e internacional. Nós não estamos investindo o suficiente na educação básica e é por isso que essa faixa etária se torna mais vulnerável.
E, no Brasil, o trabalho infantil sentiu os efeitos da crise econômica. Você percebe esse tipo de revés em outras partes do mundo?
A crise econômica afetou definitivamente as vidas de crianças em todo o mundo. Quando combinada com incerteza política, crise e conflito, as crianças vulneráveis correm maior risco e sofrem o pior.
Há pessoas que repetem que o trabalho é essencial para que as crianças ”formem caráter”. Em um contexto de crise econômica, que medidas concretas os governos podem tomar para conscientizar a sociedade de que o emprego de crianças e adolescentes não é a solução?
Em um mundo onde há 210 milhões de adultos sem emprego, por que 152 milhões de crianças estão envolvidas em trabalho infantil?
O valor do trabalho é importante, mas para adultos. O valor da educação é o que é mais importante para as crianças e para toda a sociedade, pois garante o crescimento econômico futuro. No que diz respeito aos adolescentes de 15 a 18 anos, o governo deve promover treinamento de habilidades e empregabilidade, além de garantir educação gratuita e de qualidade para todas as crianças, sem discriminação.
Uma extensa Reforma Trabalhista foi aprovada no Brasil, reduzindo a proteção à saúde e segurança dos trabalhadores. Como você vê a redução do papel dos Estados como mediadores do mercado de trabalho?
Oponho-me veementemente a tais esforços que reduzem a liberdade, a saúde e a segurança dos trabalhadores. O governo brasileiro tinha algumas das leis trabalhistas mais fortes para os trabalhadores que eram modelos para o resto do mundo. Ao enfraquecê-los, a imagem deste grande país é manchada. Os direitos humanos não devem ser comprometidos pelas forças do mercado.
Um exemplo disso foi o pedido de empresários para que o governo brasileiro reduzisse a definição de trabalho escravo, o que dificultaria resgates de pessoas. Se não fosse a Suprema Corte bloquear a nova norma do governo, hoje ela guiaria a fiscalização.
Lembro-me da minha visita ao Brasil, em 2016, quando me dirigi ao Congresso Nacional e ao Tribunal Superior do Trabalho e destaquei a necessidade de manter a então definição do Brasil de escravidão moderna [há projetos de lei que querem mudar o conceito de trabalho escravo, tornando irrelevante as condições degradantes em que os trabalhadores se encontram, o que tende a dificultar a libertação de pessoas]. As empresas estão percebendo cada vez mais que o sucesso sustentável a longo prazo exige que elas invistam em pessoas e comunidades.
Você lançou, no ano passado, em Brasília, a Campanha 100 Milhões por 100 Milhões. Em um mundo onde o individualismo avança, como jovens podem promover uma ação global de solidariedade?
Na Suécia, 20% dos políticos e três ministros do governo participaram do Dia de Volta às Aulas da Campanha 100 Milhões, em outubro passado, e se comprometeram a priorizar a educação global. Após um evento e reuniões em que estive com representantes de jovens no Parlamento sueco, o país aumentou seu financiamento para a educação global com um crescimento de 30% em sua contribuição para a Parceria Global pela Educação. Este é apenas um exemplo do impacto que a Campanha 100 Milhões está tendo nos formuladores de políticas por parte de jovens que foram movidos à ação em solidariedade a seus pares, aos quais foi negado o direito à educação.
Na atual situação política e econômica do Brasil, tenho plena confiança nos jovens do Brasil. Eles não devem perder a esperança, eles são líderes e campeões de seu país. O poder da juventude é necessário agora mais do que nunca na história do Brasil. Eu tenho plena fé neles que eles irão moldar o futuro deste país.