“A nossa civilização está sendo desafiada”, diz David King, o maior nome em mudança do clima do Reino Unido. “Sabemos o que fazer. A crise é impulsionada por combustíveis fósseis, temos que parar de usá-los. É impulsionada pelo desmatamento, temos que reflorestar”, segue o cientista que assessora líderes britânicos desde Tony Blair. O que está em curso “será tão importante quanto a Revolução Industrial, que foi toda construída sobre combustíveis fósseis.”
King, de 76 anos, foi assessor-chefe científico do governo britânico de 2000 a 2007 e agora é o representante especial para mudanças climáticas do Ministério das Relações Exteriores. Químico, nasceu na África do Sul e vem ao Brasil com frequência. No início do governo Lula trouxe uma equipe de pesquisadores para a Amazônia. Ficou impressionado, em 2014, ao visitar laboratórios de biocombustíveis de segunda geração em Alagoas. “Será antiquado usar petróleo nos transportes”, diz ele, que enxerga o avanço dos carros elétricos ou movidos a hidrogênio.
King coordenou um estudo pioneiro, lançado em julho, o “Climate Change – A Risk Assessment”, que analisa os efeitos do aumento da temperatura em 4°C ou mais em diversos países. Os resultados são assustadores, ele mesmo reconhece. O pior é o efeito sistêmico dos impactos: ao mesmo tempo em que a produção de alimentos está ameaçada no Brasil, o cenário desenha um colapso na produção de arroz no Sudeste Asiático, por exemplo. “É essa catástrofe à espreita que temos de evitar.”
King esteve no Brasil recentemente para estimular o engajamento do país em programas globais de eficiência energética e uso de energias renováveis e para discutir a participação brasileira na conferência climática da ONU em Paris, em dezembro, a CoP 21. Seu estudo de análise de riscos será feito também no Brasil, sob a coordenação do climatologista Carlos Nobre. Em Brasília, deu esta entrevista ao Valor:
Valor: O que achou da meta brasileira para a CoP 21?
David King : Ótima. É uma boa promessa.
Valor: É um pouco constrangedor dizer que vamos parar com o desmatamento ilegal.
King: Entendo seu ponto. Mas esta é a primeira vez que o Brasil assume um compromisso que abrange toda a economia. A INDC anunciada [o plano brasileiro apresentado pela presidente Dilma Rousseff em Nova York, em setembro] é um grande passo adiante. A meta brasileira de antes era apenas um desvio na rota de um cenário “business as usual” [para manter tudo como está, sem esforços adicionais]. Fui muito crítico sobre esse tipo de compromisso no passado, com cada país que usou essa métrica.
Valor: Por quê?
King: O que importa para o mundo são cortes de emissões absolutas. O Brasil se comprometeu com uma redução de 43% na emissão de gases-estufa em 2040, em toda a economia. Adoraríamos ver o Brasil inspirando todas as nações com floresta, de evitar todo o desmatamento de florestas nativas. Parabenizamos o Brasil pelo fato de ser uma economia emergente – não vou dizer que é um país em desenvolvimento – e estar dando um exemplo muito bom.
Valor: Quais as suas expectativas para a conferência de Paris?
King: E para além de Paris, algo que procuro enfatizar. Acredito que vamos conseguir um acordo em Paris. Quando somarmos todas as INDC é provável que ainda estejamos em uma rota muito perigosa, chegando a 3,5 °C ou 4°C no fim deste século, e temos de entender que esse acordo é só o começo, um processo no qual todas as nações podem começar a trabalhar juntas com o objetivo de ficar no limite de 2°C. Seria melhor ficar abaixo disso, porque 2°C em si é perigoso.
Valor: O seu estudo, sobre gerenciamento de riscos, é exatamente sobre isso, não?
King: O que um mundo com mais 2°C irá fazer à produção de alimentos no Brasil? Um relatório do Banco Mundial, de 2014, analisou cenários de impacto em algumas regiões do mundo, como o Oriente Médio e a América do Sul, com aquecimento a 2°C ou 4°C. No Brasil estimaram um impacto de redução na colheita de soja entre 30% a 70% com aquecimento de 2°C, se não houver adaptação. A questão é o impacto que irá ocorrer no mundo todo.
Valor: Somado e simultâneo?
King: O resultado sistêmico é uma catástrofe para a economia global. A produção de arroz na China entrará em colapso. A produção no delta do Mekong [Vietnã], região que mais produz arroz no mundo, também está ameaçada. Veremos desafios simultâneos para a produção de alimentos trazidos pela mudança do clima. É o que chamo de catástrofe à espreita, e é isso que temos que evitar. Depois de Paris teremos que trabalhar mais duro para ficarmos nos 2°C. O Reino Unido está trabalhando com o mundo todo.
“A mudança do clima traz desafios simultâneos à produção de alimentos. É uma catástrofe à espreita”
Valor: Com quais ações?
King: O Reino Unido tem um fundo climático internacional e estamos colocando US$ 9 bilhões nele. Nos últimos anos, esse fundo teve US$ 5,5 bilhões. Gastamos 20% evitando desmatamento em alguns países, 40% ajudando nações vulneráveis a serem resilientes à mudança do clima e 40% em mitigação para que as economias possam transitar para o baixo carbono. Acho que o governo britânico está fazendo mais do que qualquer outro, não apenas internamente. Já reduzimos emissões em 30%, comparadas a 1990, queremos reduzir em 50% em 2030 e em 80% em 2050. Nas embaixadas britânicas temos cerca de cem peritos, trabalhando em tempo integral. Em termos de diplomacia climática, esse é o maior desafio que o mundo já teve que enfrentar.
Valor: O sr. se refere às negociações do acordo?
King: Não apenas. Esse é um desafio diplomático precisamente porque todos os países estão envolvidos. Todos temos de mudar. O G-7 [grupo dos países mais ricos do mundo], em junho, comprometeu-se com a descarbonização das economias no longo prazo. O governo britânico pressionou por essa decisão. Agora o presidente Barack Obama está assumindo a liderança para termos uma grande colaboração internacional em pesquisa e desenvolvimento, bancada por recursos públicos, em energias renováveis, formas de armazenar energia e redes inteligentes, as “smart grids”. Por ano, a intenção é colocar US$ 15 bilhões e conseguir, em dez anos, produzir eletricidade e calor mais baratos, em qualquer lugar do mundo, do que com combustíveis fósseis.
Valor: Como isso funcionaria?
King: Seria um programa voluntário em que cada país será convidado a participar. Vim convencer o Brasil. Não estamos pedindo para cada país colocar dinheiro em uma cesta, cada país irá gastar em seu próprio território. O programa será desenvolvido por uma comissão encarregada de traçar o mapa do caminho. A comissão dirá: “Esta é a pesquisa que precisamos que seja feita”, os países e pesquisadores farão os estudos e iremos compartilhar responsabilidades.
Valor: Isso resolveria o eterno impasse de transferência de tecnologias para países carentes?
King: Seria uma forma de desenvolver novas tecnologias e tirar o risco do setor privado, investindo primeiro com recursos públicos. Depois o setor privado viria e traria soluções para o mercado. O Reino Unido é um exemplo do crescimento exponencial na produção de renováveis. Estamos produzindo hoje na Inglaterra mais carros do que em toda a nossa história, mas hoje empregamos mais gente e temos mais lucro com o setor de energia renovável do que com toda a indústria automotiva. O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, disse que em 2020 esse setor será um mercado de US$ 6 trilhões.
Valor: Energia nuclear está incluída nesse esforço?
King: As fontes de energia primárias importantes são as renováveis, nuclear e combustíveis fósseis com captura e sequestro de carbono [tecnologia pesquisada no mundo todo, conhecida por CCS, mas que ainda não existe comercialmente]. Esses são os pilares verticais. Os horizontais são desenvolver a capacidade de armazenar energia e eficiência energética. Alguns países estão fazendo muita pesquisa em nuclear ou em tecnologias para estocar carbono, mas esse não é o foco desse trabalho.
Valor: O que o sr. acha de o Brasil explorar o petróleo do pré-sal?
King: Vamos usar petróleo no futuro e é parte da economia de vocês extrair para que esteja disponível por ora. Mas, conforme nos movermos adiante, o uso de petróleo no transporte irá desaparecer.
Valor: Será tudo elétrico?
King: Será antiquado usar petróleo. Veremos a transição para eletricidade e combustível a partir de hidrogênio. O Japão produziu agora o primeiro veículo comercial movido a células de hidrogênio, e há muitos carros elétricos surgindo. A União Europeia tem encorajado esses movimentos, criando vantagens para veículos com baixa emissão de CO2. Vocês, no Brasil, tem alternativas, são o líder mundial na tecnologia de biocombustíveis. Agora investem na segunda geração de biocombustíveis, que quer dizer usar palha e não a cana. Podem produzir alimentos e combustíveis na mesma colheita, isso é um passo importante. No final, petróleo, carvão e gás deverão permanecer no solo.
Valor: O sr. acredita que é possível ter equidade climática?
King: Acredito que em 2050 todos os países devem ter, no máximo, uma emissão de 2 toneladas de CO2 por pessoa. Fui eu quem desenhou a política britânica de reduzir 80% em 2050, e isso significa que naquele ano emitiremos 2 toneladas de CO2 per capita. Há aí um princípio de equidade. Se todo país fizer isso, vamos ficar nos 2°C.
“A migração provocada pelo clima será esmagadora para a economia. O que vemos no Mediterrâneo é só o começo”
Valor: Quanto vocês emitem hoje per capita?
King: Estamos no caminho. Reduzimos de 10 toneladas por pessoa, em 1990, para 7 toneladas. E em 2070 teremos de ser neutros em CO2, para ficarmos nos 2°C. Temos de fazer isso, de outro modo será um desastre. Para alcançar a neutralidade, não usaremos mais petróleo, carvão ou gás e vamos reflorestar uma boa parte do que desmatamos no mundo. O Reino Unido, a Alemanha e a Noruega estão trabalhando com 37 países florestais, contribuindo com alguns bilhões de dólares em um programa de evitar o desmatamento, restaurar e reflorestar algo equivalente à área da Índia. As florestas são grandes sumidouros de carbono. Seremos nove bilhões de pessoas em 2070, temos que equiparar as emissões da agricultura com o que conseguem absorver os grandes sumidouros de carbono.
Valor: Em seu relatório, o sr. deixa claro o potencial que a mudança do clima tem de ampliar os fluxos migratórios.
King: São riscos sistêmicos. Imagine se o nível do mar subir e deixar as ilhas Maldivas debaixo d’água, assim como muitas das ilhas do Pacífico. Toda esta gente terá que ir para algum lugar. O que estamos vendo no Mediterrâneo agora é apenas o começo. O programa britânico de ajuda para os países menos desenvolvidos está hoje em US$ 18 bilhões ao ano. Estamos tentando estimular nesses países o desenvolvimento em conjunto com a resiliência climática. Se não conseguirmos lidar com esse problema, a migração provocada pelos desafios climáticos será esmagadora para a economia global. O que acontecerá em países muito populosos, como Bangladesh? Para onde irão as pessoas? Os vizinhos as estão esperando?
Valor: Algumas pessoas relacionam os anos de seca na Síria com o agravamento dos conflitos no país.
King: Acho que há uma maneira simples de olhar para isso. O preço do arroz e do trigo em 2006 e 2007 aumentaram em 200% ou 300% em termos globais. Em países de renda média e alta, absorvemos isso. Mas, no norte da África, a classe média emergente não tinha dinheiro para este impacto, e gente que esperava viver melhor agora encontra dificuldades. E as pessoas pobres então? O que vemos no Norte da África e no Oriente Médio é um fenômeno impulsionado pela produção de alimentos e pelo preço da comida. Um problema duplo: a classe média esperando viver e comer melhor, preços subindo, a demanda não sendo atendida porque a capacidade de produzir comida se complicou, e o desafio adicional da mudança do clima, uma ameaça que continua crescendo.
Valor: Porque o sr. fez um estudo sobre avaliação de riscos?
King: Trabalhamos com empresas de seguros e resseguros, que sobrevivem fazendo boas análises de risco. Em vez de dizer: “Se o nível do mar subir tantos metros”, dizíamos “isso é o que vai acontecer”. Com especialistas da China, Índia, Reino Unido, Brasil, políticos e conselheiros políticos, almirantes e generais, cientistas, a todos perguntamos qual seria o apetite político para a mudança e qual é o caminho mais provável para onde vamos. A conclusão foi um aumento de 3,5°C no final do século, o que não parece muito bom.
Valor: A outra pergunta era qual o maior desafio dos países neste contexto de temperatura elevada?
King: Sim, na China, por exemplo, vimos que, com 40 graus e alta umidade, há elevado risco de mortes. O que serão as taxas de mortalidade na Índia e assim por diante? Olhamos para esses cenários no tempo e conforme a temperatura aumenta. É um quadro assustador. Pessoas engajadas nesse programa ficaram muito preocupadas com a mudança do clima. Queríamos que as pessoas que fazem políticas entendessem os enormes desafios que o fenômeno causa aos seus países. Com o nível do mar aumentando, os chineses estimaram que 400 milhões de pessoas na costa estão ameaçadas. Calcutá é muito vulnerável a grandes inundações. Londres também é. Todas as cidades perto da costa são.
Valor: Londres tem, há anos, um detalhado plano de adaptação à mudança do clima.
King: Sim, e barreiras no rio Tâmisa. Mas e se estivermos no cenário “business as usual”? Chamo nosso plano de adaptação de “ordem de retirada”, que é o que os militares gritam na hora da derrota. Retirada para terras mais altas.
Valor: Qual a diferença entre o mundo aquecido a 2° C e 4° C?
King: A nossa civilização global está sendo desafiada. Sabemos o que fazer. A crise é impulsionada por combustíveis fósseis, temos que parar de usá-los. É impulsionada pelo desmatamento, temos que reflorestar. Temos recursos para agir. Isso será tão importante quanto a Revolução Industrial, que foi toda construída sobre combustíveis fósseis. Agora a revolução verde será erguida em alternativas aos fósseis. O setor privado no Reino Unido entende isso e está conosco. O setor privado nos EUA que está contra nós é o do carvão.