Desmonte da CLT segue tendência global e expressa selvageria do capital financeiro. Mas há brechas. Para enxergá-las, é preciso um novo movimento dos trabalhadores
Por Clemente Ganz Lúcio, no Le Monde Diplomatique
A Lei 13.467/2017, que altera o sistema de relações de trabalho brasileiro, entra em vigor em novembro. Com a nova legislação, várias formas de contrato, jornada e condições de trabalho são criadas, permitindo alta flexibilidade e ajuste do custo salarial. A proteção coletiva promovida pelas entidades sindicais fica fragilizada. O trabalhador estará mais exposto e submisso ao empregador. Os sindicatos são atacados na representação, no poder de negociação e no financiamento. A Justiça do Trabalho terá a atuação limitada. As empresas ganham regras que as protegem e evitam passivos trabalhistas.
O sistema de relações laborais combina leis, regras, normas e define procedimentos para regular as condições de trabalho dos processos produtivos, custos e formas de repartição de resultados entre lucros e salários. Ao funcionar, cria, ao longo do tempo, uma cultura que dá previsibilidade aos agentes, trata dos conflitos e estabelece os canais e o campo para o diálogo entre as partes.
Alterar unilateralmente, sem nenhum diálogo e de maneira tão profunda e extensa o sistema de relações de trabalho, como fizeram o Congresso Nacional e o governo, trará severos impactos sobre o ambiente da produção econômica e a vida social, o que exigirá renovada capacidade de enfrentamento e a construção de novo patamar de relacionamento no campo trabalhista.
O desafio para os trabalhadores e o movimento sindical será enfrentar as adversidades que surgirão com as novas regras e criar capacidades organizativas e estratégias para resistir e avançar. Será necessário apostar que, diante das adversidades, o movimento será capaz de aumentar a representatividade e ampliar a capacidade de luta. Para isso, é preciso mudar.
O grande jogo
Há um complexo processo econômico, social, político e cultural que aprofunda e expande a acumulação de riqueza em escala global e acirra a concorrência entre as empresas, por meio da combinação entre flexibilidade para alocar a força de trabalho e tecnologia.
O sistema produtivo está subordinado à lógica da acumulação da riqueza financeira e rentista. Os ganhos daqueles que vivem exclusivamente de renda se sobrepõem à estratégia de investimento das empresas. A alocação das plantas empresariais busca o menor custo, com altos investimentos em tecnologia e economia ou exclusão quase total do trabalho humano. As corporações engendram força política para enquadrar os estados e governos e conseguir reformas institucionais que reduzam impostos; imponham garantias de que o direito privado não será ameaçado pelas formas coletivas de deliberação e pelo voto universal; assegurem o avanço da desregulamentação do sistema financeiro; protejam a transmissão de heranças e a valorização de patrimônios; simplifiquem as restrições para a apropriação privada da riqueza natural (minério, terra, água, floresta etc.); acalentem a virtude da privatização de empresas estatais e a aquisição e fusão de empresas; e protejam o pagamento das dívidas públicas.
O desenvolvimento – como resultado da relação entre o Estado e os sistemas produtivos nacionais, geradores da capacidade manufatureira do país, criadores de emprego, e os salários, de crescimento do mercado interno de consumo de massa – perde encanto econômico e político. O Estado regulador da distribuição do produto social, que visa minimizar a desigualdade e gerar coesão social, está em desuso. O comando agora é feito por uma grande concentração do sistema financeiro, pela ampliação da centralização da propriedade e a reorganização da estrutura produtiva. As democracias devem ser suportadas e, para isso, precisam ser controladas.
Reforma trabalhista no mundo
As reestruturações institucionais avançam nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, com destaque para a reforma da legislação e do sistema de relações de trabalho, com o objetivo de: reduzir o custo do trabalho; criar a máxima flexibilidade de alocação da mão de obra, com as mais diversas formas de contrato e ajustes da jornada; reduzir ao máximo a rigidez para demitir e minimizar os custos de demissão, sem acumular passivos trabalhistas; restringir ao limite mínimo as negociações e inibir contratos ou convenções gerais em detrimento de acordos locais realizados com representações laborais controladas; além de quebrar os sindicatos.
As reformas das instituições dos sistemas de relações de trabalho e da legislação trabalhista foram realizadas por mais de uma centena de países depois da crise internacional. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) publicou um estudo (“Drivers and effects of labour market reforms: Evidence from a novel policy compendium“), produzido pelos pesquisadores Dragos Adascalieti e Clemente Pignatti Morano, sobre reformas legislativas laborais e de mercado de trabalho em 110 países, promovidas no período de 2008 a 2014. A pesquisa atualiza investigações anteriores, bem como faz comparações com estudos do FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Nos países desenvolvidos, predominam iniciativas para reformar a legislação do mercado de trabalho, no que se refere aos contratos permanentes. Já nos países em desenvolvimento, a ênfase foi maior em reformas das instituições da negociação coletiva. As duas dimensões estão presentes, com maior ou menor intensidade, em grande parte dos projetos de reforma implementados. Outra observação geral indica que a maioria das remodelagens diminuiu o nível de regulamentação existente e teve caráter definitivo. Foram analisadas 642 mudanças nos sistemas laborais nos 110 países. Em 55% dos casos, o objetivo foi diminuir a proteção ao emprego, o que atingiu toda a população, e tiveram caráter permanente, produzindo uma mudança de longo prazo na regulamentação do mercado de trabalho no mundo.
Do total de reformas, destacam-se aquelas que diminuem os níveis de regulação: 74% trataram de jornada de trabalho, 65% de contratos de trabalho temporário, 62% de demissões coletivas, 59% de contratos permanentes, 46% de negociações coletivas e 28% de outras formas de emprego.
Alguns desafios sindicais
As mudanças trabalhistas aqui no Brasil fazem parte dessa estratégia global do capital e da oportunidade que agentes econômicos e políticos encontraram para fragilizar o movimento sindical e a força dos trabalhadores.
É preciso superar a perplexidade e não acreditar em milagres. Se não forem enfrentados, com determinação e inteligência, os efeitos da mudança poderão ser nefastos. A construção da resposta se coloca como oportunidade para promover transformações na organização sindical e no sistema de relações de trabalho. O diálogo sindical entre os trabalhadores pode abrir possibilidades para renovadas formas de organização, desde a base e em toda a estrutura. Da mesma maneira, as negociações com os empresários podem abrir canais para efetivar um sistema de relações de trabalho que invista no fortalecimento da negociação — com capacidade de dar solução efetiva aos conflitos, com o direito de organização desde o local de trabalho — realizada entre organizações altamente representativas.
O movimento sindical deve investir na reorganização das campanhas salariais e das negociações coletivas. De um lado, tratando de incorporar nas convenções coletivas a resposta às centenas de mudanças normativas que buscam fragilizar e desproteger os trabalhadores. De outro, desenvolvendo formas de organização das campanhas salariais, unindo na ação sindical aquilo que a fragmentação das categorias divide no local de trabalho. As negociações e campanhas poderão se tornar uma oportunidade para se repensar profundamente o conceito original de categoria profissional como instrumento de unidade e não de fragmentação.
A organização sindical será desafiada pelas novas formas de contratação que, em um mercado de trabalho muito desestruturado e com alta informalidade, afastará ainda mais o trabalhador das condições reais de identidade sindical a partir do local de trabalho. Os sindicatos poderão descobrir o local de moradia como espaço de encontro sindical para amplo trabalho de base.
Os bairros poderão suscitar a oportunidade de uma atuação unitária e intersindical de diálogo e filiação, assim como de investimento em atividades culturais e esportivas capazes de promover interação para a formação crítica da classe trabalhadora. Poderão também representar para o movimento sindical um desafio de interação com outros movimentos sociais e populares, permitindo a ampliação da luta e o enfrentamento de questões que afetam dramaticamente a vida dos trabalhadores, como transporte coletivo, creche, saúde, educação, saneamento, entre outros, e abrir possibilidades de intervenção unitária em torno de políticas públicas.
A representação no local de trabalho poderá ser retomada em outro patamar. Há no Brasil, hoje, cerca de 24 mil empresas com mais de 200 trabalhadores. O movimento sindical pode construir uma estratégia para um processo de mobilização visando à constituição de representação sindical efetiva, que atue no sentido da formação de jovens militantes e dirigentes, especialmente mulheres, com investimento para o aumento da representatividade, a renovação e o fortalecimento da organização sindical desde o chão da empresa.
Há exemplos, aqui no Brasil e no mundo, de coordenação do trabalho sindical desde o local de trabalho, com esse tipo de representação fazendo parte da organização e estrutura sindical. Existem também processos articulados e simultâneos de eleição dos representantes de todas as comissões, momento privilegiado para os sindicatos marcarem presença na vida coletiva da sociedade.
A estrutura sindical poderá ser profundamente renovada, seja com muitas fusões entre sindicatos ou redesenho da relação entre eles, federações e confederações e organizações no local de trabalho. Poderá ser construído um novo conceito de sindicato que materialize valores presentes na nossa cultura.
Se o conceito de categoria for usado como instrumento para orientar a organização da força social dos trabalhadores a partir a produção, poderá ser criado um ambiente no qual a identidade de classe se expresse na própria organização.
O financiamento sindical é um desafio estratégico. Sem recursos, a capacidade de atuação fica fragilizada e pode até ser destruída. Considerando que os empregadores querem que os efeitos normativos das convenções e dos acordos tenham validade universal para os trabalhadores, pois isso cria um sentido organizativo para as relações de trabalho, é necessário implantar regras de deliberação coletiva para aporte das contribuições negociais, decididas em assembleias gerais da base sindical (sócios e não sócios). Deve-se também buscar uma regulamentação geral, em lei, que dê segurança a todos.
Como forma de melhorar a capacidade de financiamento, a base patrimonial da estrutura sindical poderá ser reorganizada, visando, de um lado, alocar parte dos recursos para gerar receita e, de outro, investir para melhorar a eficiência e compartilhar usos de estrutura e equipamento, bem como permitir e promover usos coletivos de colônias e serviços como meio de oferecer lazer de qualidade e baixo custo aos trabalhadores.
Ainda: uma das formas de melhorar a capacidade de financiamento é constituir capacidade coletiva, em termos de serviços de comunicação, formação, pesquisa e assessoria. Isso poderá ampliar a capacidade cognitiva coletiva para criar, desenvolver e estender o alcance das políticas e iniciativas sindicais.
É necessário criar meios nacionais de comunicação capazes de difundir uma visão de mundo do trabalhador e do movimento sindical, com o uso de instrumentos que possam disputar a hegemonia da grande mídia, que difunde uma perspectiva individualista que se contrapõe aos valores da igualdade, da solidariedade e de visão crítica e plural.
Um renovado diálogo sindical poderá emergir, com capacidade de construir um pacto intersindical de autorregulação e governança, que busque orientar o sentido que nos une em um campo de relações democráticas e respeitosas, que compreende que as diferenças nos tornam grandes, se tratadas com tolerância e fraternidade política.
Na relação com o empresariado, é preciso apostar que eles não querem o caos nas relações laborais. Por isso, é possível abrir novos canais de diálogo que coloquem o sistema de relações de trabalho como parte essencial de um projeto de desenvolvimento nacional, tratando de acordos e compromissos.
Por fim, toda lei só ganha efetividade se ganhar legitimidade. Haverá, por uma década, disputas sobre a legalidade, sobre as interpretações e muita resistência. Tudo isso pode ser usado como oportunidade para resistir e avançar, mas será necessário coordenação e articulação.
O jogo social não acaba. Não existe apito final. A história das conquistas sociais e políticas, impulsionadas pela utopia da justiça, da liberdade e da igualdade, indica que não há outra alternativa a não ser lutar, depois, lutar e, por fim, lutar! E se a esperança estiver se esvaindo, o cansaço se sobressaindo, as costas doídas de tantos embates, será preciso olhar para o lado, reconhecer os companheiros e companheiras, pedir ajuda e, na solidariedade que há séculos une os trabalhadores como classe, cerrar as fileiras que nos tornam imbatíveis.
Clemente Ganz Lúcio é Diretor Técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Sociais e Econômicas) desde 2003. Sociólogo e professor universitário, é também membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social