As mudanças feitas por deputados e senadores no programa de refinanciamento de dívidas (Refis) com a União, a contragosto da equipe econômica do governo, renderam descontos generosos aos próprios parlamentares que aprovaram as medidas provisórias. Em alguns casos, ao utilizarem as regras criadas por eles próprios, os congressistas chegaram a pagar apenas 5% do valor que o governo cobrava.
Dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, responsável pelas cobranças da Dívida Ativa, obtidos pelo Valor pela Lei de Acesso à Informação, mostra que 79 deputados e senadores aderiram ao parcelamento. Inscreveram débitos em nome próprio, de empresas que são sócios ou dívidas pelas quais são corresponsáveis (cobrados se o devedor principal ficar inadimplente). Apenas seis deles participaram do programa antes das mudanças e, portanto, não se beneficiaram dos descontos.
Os 73 congressistas que aproveitaram as mudanças deviam pelo menos R$ 217 milhões à União. Mas, com os abatimentos incluídos no Refis por eles mesmos, pagarão apenas metade: R$ 108 milhões. Dois optaram pela versão sem descontos, mas com parcelas ajustadas ao faturamento da empresa, em até 120 vezes, o que o governo também era contra por facilitar fraudes e não garantir a quitação.
O valor pode ser ainda maior porque o Refis permitia também parcelar dívidas com a Receita Federal, que ficam sob sigilo.
A equipe econômica do governo, com o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles (MDB) e a Receita à frente, tentou barrar a flexibilização da medida provisória (MP), dizendo que a concessão de benefícios estimularia os maus pagadores e aumentaria a inadimplência futura. A primeira versão da MP sequer previa desconto nas multas e juros – autorizava apenas abater o montante com créditos fiscais e parcelar em até 120 vezes, desde que se pagasse entrada de 20%.
Enfraquecido pelas denúncias de corrupção e em busca de apoio para aprovar a reforma da Previdência, o presidente Michel Temer determinou que a Fazenda cedesse. A versão final, após muita pressão do Congresso, permitiu descontos de até 90% dos juros e 70% das multas, além de isenção dos encargos, para o pagamento à vista. As dívidas inferiores a R$ 15 milhões tiveram benefício duplo: entrada reduzida, de 5%, e possibilidade de acumular descontos nos encargos e créditos para abater o valor total.
Foi essa regra utilizada pelo relator do Refis, deputado Newton Cardoso Júnior (MDB-MG), para pagar apenas 8% do que a PGFN cobrava das empresas de sua família – duas dívidas da Companhia Siderúrgica Pitangui, da qual é presidente, e uma da Rio Rancho Agropecuária, onde aparece como diretor. Duas foram pagas à vista, com uso de créditos tributários , e outra dividida em 34 vezes. Dos R$ 12,4 milhões cobrados, ele pagará R$ 972 mil.
Cardoso afirma que o Refis era um pedido de todos os empresários do país, atingidos pela crise, e que as mudanças proporcionaram arrecadação muito maior que a esperada pelo governo. “É impossível alguém pensar que a Câmara fosse tratar de um negócio desse tamanho para resolver problemas particulares”, disse.
O emedebista declarou ainda que não mistura questões pessoais com a atividade parlamentar e que não participa da administração das empresas. Questionou ainda a PGFN considerar um “desconto” o abatimento de créditos – que a equipe econômica não queria permitir para o que já estava na Dívida Ativa, mas acabou vencida pelo Congresso. “Prejuízo fiscal é moeda. Se eu não usar no Refis, uso na escrita fiscal”, afirmou.
O Psol tentou aprovar emenda para proibir que parlamentares e parentes se beneficiassem do Refis. Com amplo apoio da base aliada de Temer, a proposta foi derrotada por 205 a 164. Líder da sigla na Câmara, o deputado Ivan Valente (SP) diz que isso foi a “farra do boi”. “É mais do que legislar em causa própria. É zombar da sociedade”, acusou. Ele criticou ainda os que se aproveitam desse tipo de medida, mas votam para tirar direitos dos trabalhadores, como nas reformas da Previdência e trabalhistas.
Outros dois políticos mineiros lideram a lista dos maiores descontos nominais entre os congressistas. O senador Zezé Perrella (MDB) reduziu em R$ 38 milhões (83% do que era cobrado) as dívidas de um grupo de frigoríficos que a Receita acusa de sonegação fiscal e que pertenceriam ao parlamentar. Ele negou participação nas empresas.
Relator da segunda denúncia contra Temer, que ele recomendou ser arquivada, o deputado Bonifácio de Andrada (DEM-MG) quitou em três parcelas dívida de R$ 30 milhões da União das Faculdades Integradas de Tocantins (Unifat), da qual é sócio. Com os descontos, pagou R$ 12,2 milhões, 40% do que devia. Ele não respondeu ao Valor.
O maior desconto, percentualmente, pertence ao deputado João Gualberto (PSDB), pré-candidato ao governo da Bahia. A procuradoria cobrava R$ 5,2 milhões da Galileo Indústria e Comércio, de propriedade do tucano. Com o uso de créditos de prejuízo fiscal e demais abatimentos, ele pagará R$ 259 mil – um desconto de 95% do que devia. O parlamentar, que participou inclusive da comissão que debateu a MP, também não comentou.
Outro deputado da comissão, responsável por emendas que flexibilizaram o Refis, Félix Mendonça Júnior (PDT-BA) aproveitou o programa para parcelar, em até 150 vezes, impostos atrasados de três empresas suas. Com o parcelamento, economizará R$ 403 mil e pagará R$ 710 mil.