Montadoras e metalúrgicos do ABC decidiram unir-se para pedir socorro ao governo. Esperam a mão do poder público para encolher jornadas já reduzidas e, assim, segurar trabalhadores especializados até as vendas melhorarem. A crise se estendeu mais do que o previsto e já não basta trabalhar um dia a menos por semana. Mas ao contrário de outros momentos ruins, desta vez não adianta só esperar mudanças pontuais, como o aumento da oferta do crédito. A recuperação econômica ajudaria a resolver os problemas de hoje. Mas o futuro exige uma indústria afinada com novas tendências de locomoção em centros urbanos que já colocam em xeque a opção do carro como transporte individual.
Montadoras e autopeças operam com 52% de ociosidade. Na indústria de caminhões, sobra 75% da capacidade. O governo já acenou com apoio. Recentemente o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, anunciou a intenção de tornar permanente o Programa de Proteção ao Trabalho, uma reivindicação dos fabricantes de veículos. A crise não foi tão passageira como se pensou em novembro de 2015, quando o chamado PPE foi criado para durar só até dezembro de 2017.
PPE e “lay-off” são as ferramentas mais usadas para evitar ou adiar demissões na indústria automobilística hoje. Ambos usam recursos públicos, do Fundo de Amparo ao Trabalhador, para completar salários do empregado que é obrigado a ficar em casa. No “lay-off” o trabalho é suspenso temporariamente enquanto que no PPE reduz-se a jornada em um dia por semana.
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, espera que o governo também aumente a quantidade de dinheiro publico na complementação salarial caso seja preciso diminuir ainda mais a jornada. É uma necessidade que ele tem percebido nas conversas com empresários. Desde 2011, a base que Marques comanda diminuiu de 107 para 79 mil metalúrgicos. “A crise foi uma paulada no emprego”, diz.
Hoje 26 mil empregados da indústria automobilística participam de PPE ou “lay off”. Equivale a mais de 23% de todo o efetivo do setor. “Evitamos dispensar mão de obra especializada porque apostamos na recuperação”, diz o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Antonio Megale. Por enquanto, o consumidor tem evitado dívidas. Total de 48,2% dos carros novos vendidos no país em junho foram pagos à vista.
Para driblar a ociosidade, a Ford optou por uma saída inédita no setor. Nos próximos dias, vai juntar operários da linha de carros com os de caminhões. As duas equipes da fábrica de São Bernardo do Campo (SP) serão treinadas para produzir automóveis numa parte da semana e veículos pesados na outra. Já a Volkswagen abriu programa de demissões voluntárias. Há um excedente de 3,6 mil empregados, mais de 30% do seu efetivo no ABC, segundo o sindicato.
A crise não é, porém, o único obstáculo no caminho das montadoras. Uma clara mudança de hábitos, sobretudo nos centros urbanos, reduz cada vez mais o uso do carro para o transporte individual.
O professor titular da Universidade de São Paulo, Glauco Arbix, decidiu deixar seu carro na garagem no dia a dia e passou a usar o uberPOOL, uma versão do uber que permite dividir viagem e custos com outras pessoas que vão na mesma direção.
“Essa indústria enfrenta obstáculos de naturezas distintas. O mais sensível é o desaquecimento da economia. Mas há um mais recente, flagrante e menos compreendido pelo setor, que é o surgimento de novas alternativas de locomoção”, afirma Arbix, pesquisador do Observatório da Inovação.
Para ele, empresas gigantescas, determinantes na política industrial do século XX, se deparam hoje com um consumidor disposto a compartilhar viagens e que se pergunta se vale a pena investir na compra de um carro veloz para circular em cidades congestionadas.
“Além disso, se observarmos quem está na vanguarda do desenvolvimento de softwares para os carros que funcionam sem motorista, encontraremos empresas que nada têm a ver com a indústria automobilística, como Google ou Facebook “, diz.
Recentemente a Fiat Chrysler associou-se à Google para desenvolver um carro autônomo. A montadora entregará à empresa de tecnologia 100 unidades da versão híbrida da minivan Pacifica, que será testada para funcionar sem motorista. O presidente da Fiat Chrysler Brasil, Stefan Ketter, diz que o grupo aposta na união com quem já entende desse tipo de tecnologia. “Desse jeito ambos ganhamos”, destaca.
O presidente da Anfavea concorda que existe uma tendência mundial de o carro ganhar mais importância pelo uso e menos como propriedade. Para Megale, falta, porém, ainda muito tempo para o consumidor perder o prazer em dirigir. “E mesmo quando a tendência do compartilhamento se confirmar alguém terá de produzir os veículos”, diz. O dirigente discorda que as montadoras precisam aproximar-se das empresas de tecnologia. “Temos gente para desenvolver inovações”, afirma.
O professor titular do departamento de engenharia de produção da USP, Mario Salerno, diz que o Brasil está pouco envolvido nas pesquisas que tendem a transformar o carro numa integração eletro-eletrônica, o que agrava as dificuldades do setor no país. “Além de ter muitas marcas, muitos modelos e muitas fábricas, o que reduz escala, o Brasil está fora da pesquisa do carro elétrico, que domina metade do desenvolvimento mundial dos veículos hoje”, diz.
Ninguém põe em dúvida o peso de uma indústria que emprega 9 milhões de pessoas em todo o mundo. Por outro lado, o papel do carro nunca foi tão questionado. A crise estrutural pode deixar marcas muito mais profundas do que a desaceleração econômica em um país como o Brasil, sétimo mercado de veículos do mundo. As palavras de um executivo revelam que no fundo os dirigentes do setor estão preocupados: “antigamente era só pedir redução de IPI e as coisas se resolviam …”