RIO e BRASÍLIA – Com saldo de mais de R$ 300 bilhões, o FGTS, administrado pela Caixa Econômica Federal, desperta o apetite de bancos privados. De acordo com fontes do setor, instituições como Santander e Bradesco estão interessadas em quebrar o monopólio da Caixa e, nessa disputa, estariam dispostas a pagar mais pela poupança do trabalhador. Hoje, o dinheiro depositado no Fundo rende 3% ao ano mais Taxa Referencial (TR), que está em 2% no acumulado em 12 meses, abaixo da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), de 9,49% em 12 meses. O indicador mede a variação do custo de vida de famílias com renda de até cinco salários mínimos, realidade de boa parte dos trabalhadores. Para os bancos, a principal vantagem seria o acesso a uma montanha de recursos, considerada estável, que lhes permitiria investir em projetos de longo prazo, com retorno atraente. Uma eventual mudança, mesmo que apoiada pelo governo, dependeria do aval do Congresso.
Alguns especialistas alertam, porém, que uma eventual melhora na remuneração do Fundo poderia comprometer sua missão social. O dinheiro do FGTS é usado para financiar habitação, saneamento e infraestrutura, em geral com taxas abaixo do mercado. Se o juro para captar recursos sobe, o efeito é uma alta na outra ponta. A centralização em uma única instituição, por um lado, facilita a vida do trabalhador, que não precisa abrir conta em um banco diferente cada vez que muda de emprego.
Ainda não há conversas entre setor bancário e governo sobre eventual mudança no marco regulatório. O que circula no setor é que há dois possíveis modelos para substituir o atual: ou o trabalhador elegeria o banco em que deseja ter uma conta do FGTS, ou a empresa em que ele trabalha lhe daria duas a três opções, como é feito hoje com as contas-salário. Os recursos continuariam a ser usados para as finalidades previstas em lei, mas seria dada aos bancos alguma liberdade para aplicar parte do dinheiro, como em títulos privados.
OPORTUNIDADE PARA CONQUISTAR CLIENTES
O modelo não seria de todo inovador, uma vez que a gestão do Fundo era descentralizada até os anos de 1990, com participação de dezenas de bancos. Especialistas dizem que, uma vez concluído o processo de impeachment, haveria ambiente político e econômico para debater uma eventual mudança. Algumas regras do Fundo já estão sendo revistas, como a recente autorização para uso do saldo do FGTS como garantia do crédito consignado.
— O governo é a favor (da mudança no FGTS). Quando bater o martelo do impeachment, vai vir com chumbo grosso. A lógica já está formada — diz João Augusto Salles, da Lopes Filho&Associados. — E tudo o que os bancos querem é acesso a recursos estáveis, de longo prazo e barato.
Além de pôr a mão na bilionária poupança de milhões de trabalhadores, os bancos enxergam na gestão das contas do FGTS uma possibilidade de fidelização do cliente, que tende a concentrar suas movimentações financeiras em uma única instituição. Há ainda a remuneração pelo gerenciamento do Fundo. Em 2014, a Caixa recebeu R$ 4 bilhões pela prestação do serviço. Esse dinheiro é pago pelo próprio FGTS, que teve lucro de R$ 12,9 bilhões naquele ano, quando encerrou o exercício com saldo de R$ 328,2 bilhões. É o último balanço disponível.
O Santander disse em nota que “apoia medidas que visem à gradual desregulamentação do sistema financeiro nacional, de forma a aumentar a competitividade do setor, com benefícios para toda a sociedade”. Procurado, o Bradesco não fez comentários. O Banco do Brasil disse não ter interesse no negócio. Já o Itaú Unibanco não confirmou nem negou disposição de competir com a Caixa. A Febraban, federação que representa os bancos, disse que não há discussão sobre o tema em seus fóruns.
Um executivo do setor diz que, com a Selic (a taxa básica de juros) a 14,25% ao ano, seria possível pagar 8% a 10% ao ano ao trabalhador. Mas essa remuneração não seria fixa como é hoje. No caso de a taxa de juros cair, poderia ser reduzida também. O FGTS foi criado em 1966. Sua gestão só foi centralizada na Caixa em 1992, após CPI mista que apurou irregularidades do Fundo. Em 1999, uma mudança na lei fez com que a TR deixasse de acompanhar a inflação. Desde então, a perda acumulada pelos trabalhadores soma R$ 329 bilhões, nas contas da ONG Fundo Devido. O cálculo é a diferença entre o que o Fundo rendeu efetivamente e quanto ele teria rendido se aplicada a inflação medida pelo INPC no período, no lugar da TR.
Simulação feita pela ONG a pedido do GLOBO mostra que quem tinha saldo do FGTS de R$ 100 mil em dezembro de 2014 encontrou R$ 104.722 quando tirou o extrato em dezembro de 2015, rendimento de 4,72% no ano. Se em vez da TR, o INPC tivesse sido usado para atualizar o dinheiro, o rendimento teria sido de 14,29%. E a conta do trabalhador teria engordado um pouco mais, para R$ 114.294. Se aplicado o rendimento que os bancos estariam dispostos a pagar, de 8% a 10% ao ano, o valor teria ficado em R$ 108 mil a R$ 110 mil, acima do que é hoje, mas abaixo da correção inflacionária.
— O que o FGTS faz hoje é um roubo. Ele obriga o trabalhador a fazer uma poupança, recolhendo 8% do salário a cada mês, e a remunera a uma taxa que é menos da metade da inflação. E não é dada ao trabalhador a chance de escolher em que projeto o seu dinheiro será investido. Por que eu ou você temos que perder dinheiro para que outra pessoa seja beneficiada com juros baixos quando comprar uma casa? Fazer política com chapéu do outro é fácil — indaga José Marcio Camargo, da Opus Gestão.
Mario Avelino, fundador da ONG Fundo Devido, também faz críticas ao sistema atual. Frisa, porém, que, embora uma eventual quebra do monopólio da Caixa possa abrir caminho para uma melhor remuneração dos recursos do Fundo, as perdas seriam maiores que os ganhos:
— Com a mudança, o Fundo perderia a função social. O rendimento baixo permite o crédito a juros baixos para habitação e saneamento. Se remunerar melhor o Fundo, o juro ficará mais alto na outra ponta e quem perde é a população de baixa renda.
Para Luis Miguel Santacreu, da Austin Rating, a mudança pode melhorar a governança do FGTS:
— Há muita ingerência política sobre os bancos públicos. Veja o caso do uso do FI-FGTS (fundo do FGTS que investe em infraestrutura) em projetos como a Sete Brasil (a empresa, envolvida no escândalo de corrupção da Petrobras, entrou em recuperação judicial este ano).
A ideia é que, caso haja uma mudança no marco regulatório, seja dado à Caixa um tempo para adaptação. Um prazo de dois anos é considerado pelo setor como suficiente. Mas a quebra do monopólio da Caixa não é simples. Tanto a centralização das contas no banco público como a remuneração do Fundo são estabelecidas em lei. Por isso, para alterar o sistema, seria necessário apresentar projeto de lei ao Congresso, com a exigência de aprovação dos parlamentares por maioria simples.
— Já ouvi essa conversa no passado (sobre o interesse dos bancos). Isso não está em estudo — disse o secretário-executivo do Conselho Curador do FGTS, Bolivar Moura Neto, acrescentando que se a medida vingasse, não haveria alterações nos investimentos do Fundo em habitação e saneamento, definidos pelo Executivo e Conselho Curador.
Procurada, a Caixa disse que, em 2015, foram enviados 238,9 milhões de extratos de conta vinculada do FGTS, via Correios, para os trabalhadores. A Caixa oferece o serviço de extrato do FGTS por e-mail ou mensagem SMS, totalizando dez milhões de e-mails emitidos e 128 milhões de SMS aos trabalhadores que fizeram cadastro via internet. Em 2015, a Caixa realizou 37,8 milhões pagamentos aos trabalhadores, o que representa mais de 103 mil operações de saque por dia. Para atender tanta gente, a estrutura não é pequena. São cerca de 83 mil pontos de atendimento, entre agências, lotéricas e correspondentes, espalhados pelo país.
Segundo ele, a avaliação do Conselho Curador sobre a gestão das contas é positiva. De qualquer forma, o acordo sobre a remuneração do banco para administrar as contas será revisto no ano que vem, disse. Ele lembrou que a experiência dos bancos privados na gestão das contas do FGTS foi problemática. Em 2001, quando a Justiça determinou o pagamento da indenização decorrente da inflação aos cotistas (planos Verão e Collor I), a Caixa teve uma enorme dificuldade para levantar o histórico das contas, que estavam com outras instituições. Segundo relatos, havia contas em caixas de papelão e que precisaram ser digitalizadas e validadas.