Uma em cada três mulheres no mundo sofre violência em algum momento da vida
Segundo fala da subsecretária geral das Nações Unidas, Phumzile Mlambo-Ngcuka, em evento em São Paulo, em maio, uma em cada três mulheres no mundo sofre violência em algum momento da vida. Ao ler esse dado, pensa-se imediatamente em agressão física, mas há comportamentos violentos disfarçados de proteção, chamados pelos especialistas de “violência benévola”.
“Ela se apresenta na forma de atitudes invasivas ou controladoras, que tolhem a liberdade da mulher”, afirma a psicóloga Jane Felipe de Souza, professora da Faculdade de Educação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisadora do GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero).
Assim como a violência física, a benévola, muitas vezes, é praticada pelo próprio companheiro da mulher. A seguir, três frases exemplificam bem a situação.
1 – “Para que você quer trabalhar? O que eu ganho dá para nós dois”
A dona de casa Helena, 22, casada com José, 52 (os nomes foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados), moradora da cidade de Tubarão (SC), era auxiliar de escritório, mas, desde que casou, há três anos, deixou o emprego.
Hoje, ela cuida da casa e de dois filhos: uma menina de dois anos e dois meses e um menino com pouco mais de um ano. Assim que o bebê completou um ano, ela disse ao marido que queria voltar a trabalhar, mas ele não aprovou.
“Ele falou bem assim: ‘você não precisa, a gente já tem conforto com o que eu ganho. Daí, nem falei mais nada”, diz.
2 – “Ela não é boa companhia para você”
Outra situação bastante comum é o controle sobre comportamento, hábitos e vida social. O companheiro pode “sugerir” à mulher que não use uma roupa mais atraente ou não saia com as amigas à noite para “protegê-la”. “A violência benévola pode ser interpretada como prova de cuidado e amor”, fala a psicóloga Jane.
Comportamentos invasivos também costumam ser interpretados dessa maneira. É o caso do namorado que liga várias vezes ao dia ou aparece de surpresa.
“Ele me ama”, pensará a namorada, achando a atitude muito romântica. “Mas ele pode estar, na verdade, exercendo controle sobre os passos da mulher”, diz Jane.
É o que identificou a advogada Tatiana Coutinho Pitta, professora da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), na pesquisa que resultou no livro “Protagonismo Feminino: A Necessária Atuação Estatal na Proteção da Mulher Vítima de Violência” (Editora Boreal).
“Costumo dizer que o homem agressor cria uma teia de aranha. Ele envolve a mulher e a afasta de parentes e amigos, que possam alertá-la para essa condição de submissão”, afirma Tatiana.
3 – “Você está surtando! Está de TPM?”
Em uma discussão com o parceiro, é comum que a mulher ouça frases como: “você está vendo coisas que não existem “, “você é exagerada, parece louca”, “você está naqueles dias?”. Essa é uma forma de violência emocional que tem até um nome específico: “gaslighting”.
O termo vem do título de um filme de 1944, no qual um homem tenta convencer a mulher, interpretada pela atriz Ingrid Bergman, de que ela ficou louca.
“Esse tipo de violência se apresenta quando as mulheres são tratadas como irracionais, excessivamente sensíveis, dramáticas, desequilibradas ou sem senso de humor (em situações em que são ridicularizadas ou humilhadas). Elas vão sendo tão sistematicamente agredidas que passam a ter dúvidas sobre o que falam e sentem”, declara a psicóloga Madge Porto, mestre em saúde coletiva e professora da Universidade Federal do Acre.
Violência moral é tão prejudicial quanto a física
Segundo a advogada Tatiana Coutinho Pitta, a violência psicológica repetida regularmente leva à destruição da autodeterminação e da autoimagem da mulher e se configura como assédio ou violência moral. E essa, muitas vezes, abre o caminho para a violência física.
Foi nesse tênue limite entre a agressão moral e a física que a maranhense Ana, 40, viveu os cinco anos de seu casamento. Ana é advogada, bem como o ex-marido, mas o conhecimento da lei não foi o suficiente para evitar a situação de violência.
“Sofri ameaças de morte e episódios de tensão extrema”, afirma ela. “Sempre procurei conversar, demonstrava que me sentia sufocada e controlada. Daí vinham pedidos de desculpas, presentes e promessas de mudança. Por fim, dei de presente para ele uma imersão de quatro dias de psicoterapia e iniciamos uma terapia familiar: eu, ele e as crianças.”
A terapia não funcionou e Ana acabou recorrendo à Justiça. Contudo, mesmo após seis anos de separação, ela ainda sofre os efeitos da violência doméstica. “O rendimento do meu trabalho foi afetado e não tenho motivação para a vida social. Sofro com dores de cabeça, alteração de pressão arterial, sono e apetite”, diz.
Lei Maria da Penha
A Lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, reconhece a existência da violência psicológica e moral dentre as formas de violência cometidas contra a mulher. “Mas a possibilidade de punição por algum dano comprovado à integridade psicológica da mulher é muito rara de se efetivar na prática, porque a real expectativa é pela comprovação de um dano físico”, declara a advogada Isadora Vier Machado, professora adjunta de direito penal na UEM (Universidade Estadual de Maringá), que pesquisou o assunto para a realização de sua tese de doutorado pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em 2013.
“O importante é que, com a responsabilização criminal, seja implementada também a proposta da Lei Maria da Penha de que os homens passem por programas de discussão, reflexão e reeducação, a fim de instituir novos parâmetros relacionais, pautados pela igualdade de gênero”, fala a advogada.