Trabalho: União desembolsa hoje 25% do que gastava no início da década
João Villaverde, de São Paulo
Para cada R$ 100 gastos com o seguro-desemprego, o governo federal usa apenas R$ 1 em programas de qualificação de mão de obra. No Estados Unidos, para cada US$ 100 gastos com os benefícios aos desempregados, o governo de Barack Obama investiu US$ 11,25 em qualificação no ano passado. O descompasso entre as duas despesas no Brasil preocupa desde técnicos do governo até empresários, que já apontam a falta de qualificação dos trabalhadores como um dos principais entraves para o crescimento econômico. Sete em cada dez empresários sofrem com a falta de qualificação profissional, de acordo com pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com 1,6 mil empresas.
No governo federal, o gasto com qualificação de trabalhadores aumentou 32% entre 2009 e 2010, mas os R$ 227,9 milhões aplicados no ano passado foram muito inferiores aos R$ 961,1 milhões empregados em 2001, pico dos últimos 15 anos. No governo do Estado de São Paulo, onde não há utilização de recursos federais para cursos de qualificação desde 2006, as despesas ficaram em torno de R$ 90 milhões nos últimos dois anos.
A previsão inicial do Conselho de Administração do Fundo de Amparo do Trabalhador (Codefat), o órgão que nutre o governo de recursos para os programas de qualificação, era repassar R$ 1,2 bilhão para o Ministério do Trabalho gastar em qualificação no ano passado, mas houve retenção de quase R$ 1 bilhão para formação do superávit primário. Além disso, o Codefat ainda teve 20% dos recursos retidos pela Desvinculação das Receitas da União (DRU). “O que mais nos preocupa”, diz Sérgio Luiz Leite, integrante do Codefat, “é a enorme burocracia para a liberação dos recursos”.
Os encarregados da gestão dos programas em Brasília e São Paulo argumentam que eles não são ampliados rapidamente porque falta um “mapeamento” detalhado das necessidades setoriais e regionais. E os efeitos da brutal redução de gastos em relação ao passado (no lado federal) são minimizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Mais de 1,5 mil das 1,6 mil empresas (94%) consultadas pela CNI no início do ano afirmaram que o maior déficit de mão de obra – isto é, as vagas que não são fechadas devido à falta de qualificação – está na produção. Ou seja, mais que os cargos especializados, como chefia e gerência, a principal reclamação dos empresários vem da falta de pessoal para o “chão” da fábrica. O equivalente a 82% das indústrias consultadas pela CNI afirmaram ter, também, problemas para encontrar técnicos.
Segundo a Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (ANTC), haverá um déficit de 120 mil caminhoneiros neste ano. De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Software (Abes), o número de vagas deixadas em aberto no setor devido à falta de profissionais qualificados saltará das 70 mil registradas em 2010 para quase 100 mil neste ano. Segundo informações do SindiVestuário, das cerca de 15 mil contratações que devem ocorrer no setor em São Paulo neste ano, 3 mil não serão preenchidas por falta de pessoal qualificado – no Brasil, cerca de 7,5 mil vagas não serão preenchidas ao longo deste ano no setor.
Para o presidente de uma grande fabricante de calçados, a falta de qualificação da mão de obra é “o mais grave problema das empresas”, uma vez que, segundo ele, as dificuldades para contratar pessoal não são restritas ao “chão” de fábrica, mas também para cargos de chefia e de administradores. “Se o setor público começar hoje um programa amplo e sério na educação básica, em cursos técnicos e em programas de qualificação, os resultados só viriam em três ou quatro anos”, diz. “E como ficaremos até lá, se em 2011 já está impossível contratar?”
De acordo com o industrial, o governo deveria reduzir os trâmites burocráticos que envolvem a vinda de trabalhadores de países da América Latina, onde muitas médias e grandes empresas brasileiras já têm operações. “Nossos salários são maiores e a economia cresce mais rapidamente aqui, então seria fácil atrair esses trabalhadores”, diz ele, que admite dificuldades para fazer frente à demanda do mercado interno neste ano.
Os cursos oferecidos pelo setor público, que vão de informática a eletricista, passando por pintor e vitrinista, consomem R$ 872 por aluno, nos programas de seis meses de duração contratados pelo governo federal. O processo entre a necessidade – quando uma empresa ou entidade de classe contacta o Ministério do Trabalho para alertar sobre a dificuldade para encontrar mão de obra qualificada em determinada região – e a oferta de cursos pode demorar 15 dias, no caso de um município pequeno, ou até mais de dois anos, para cidades maiores.
Segundo Ana Paula Silva, diretora do Departamento de Qualificação do Ministério do Trabalho, que administra os gastos na área, o dinheiro precisa passar por audiências públicas em cada região que receberá os cursos, além das licitações para definir a instituição que oferecerá o curso.
Em São Paulo, onde cada aluno custa quase três vezes mais – R$ 2,3 mil por curso de três meses oferecido pelo governo do Estado -, a dinâmica é maior, mas há relatos de desperdício de recursos públicos.
“Da minha turma de 25 estudantes, no máximo cinco fizeram o curso a sério, o resto estava lá só pela bolsa mensal do governo”, diz um dos trabalhadores que, no ano passado, frequentou um curso de qualificação oferecido no Senai, contratado pelo governo de São Paulo. Todos os que frequentam um dos cursos paulistas recebe uma bolsa de R$ 330 para gastos com transporte e alimentação, condicionados à frequência mínima de 75%.
Falta de pessoal para o “chão” da fábrica é a principal reclamação de empresários ouvidos no início do ano pela CNI
Segundo Davi Zaia, secretário do Trabalho e do Desenvolvimento de São Paulo, cabe às comissões municipais do trabalho e à entidade contratada para “sediar” ou oferecer os cursos a responsabilidade de fiscalizar. “Estamos fortalecendo muito as comissões, que são aquelas mais próximas das necessidades das empresas e dos frequentadores dos cursos”, diz Zaia, para quem os “desvios” são marginais.
O secretário do Trabalho em São Paulo prepara para junho o lançamento de um programa “ambicioso” para qualificação da mão de obra. Zaia espera receber das comissões de 440 municípios do Estado um relatório sobre as necessidades e custos para cursos. “Não adianta simplesmente oferecer curso de eletricista numa cidade que precisa de pedreiro, precisamos investir de acordo com a necessidade”, diz Zaia. Entre janeiro e maio, o Estado espera qualificar 15 mil trabalhadores e outros 35 mil a partir do segundo semestre.
As iniciativas serão atendidas por um orçamento maior – R$ 166,3 milhões, de acordo com a previsão orçamentária – e também por verbas federais. Além disso, o secretário foi incumbido pelo governador Geraldo Alckmin a reatar os laços com o Ministério do Trabalho – por determinação do antigo secretário do Trabalho, Guilherme Afif, não eram utilizados recursos federais para programas do Estado. Apenas no ano passado, o governo paulista devolveu cerca de R$ 4 milhões ao governo federal, oriundos de recursos do FAT.
Enquanto o governo americano separou pouco mais de 13% do total gasto em 2010 para os benefícios de seguro-desemprego (US$ 160 bilhões) e 1,5%, ou US$ 18 bilhões, para programas de qualificação, o governo brasileiro destinou ao seguro-desemprego apenas 2,8% do total de R$ 700 bilhões de despesas em 2010, excluindo a conta de juros – e mero 0,03% do total com programas para qualificação da mão de obra. Além dos pequenos gastos, até o ano passado, três dos 26 Estados brasileiros não utilizavam recursos federais para qualificação da mão de obra: São Paulo, Paraná e Distrito Federal.
Em junho, o governo deve lançar o programa “Qualifica Brasil”, que passará a integrar todos os Estados – o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, mantém conversas periódicas com Zaia, de São Paulo, para “recuperar” a cooperação entre Estado e União. O novo programa sucede o Plano Nacional de Qualificação (PNQ), que de 2008 a 2010 contratou a qualificação para 712 mil alunos, dos quais 450 mil já concluíram o curso. Segundo Ana Paula, cerca de 150 mil estão empregados em trabalho formal e “muitos outros se dedicam ainda ao trabalho informal”.
“A ideia é mobilizar todas as informações regionais em um sistema operacional único, que permitirá o repasse de acordo com a empregabilidade, e também a fiscalização dos recursos”, diz Ana Paula, que coordena também os gastos com o programa Pró-Jovem, que nos últimos três anos qualificou em torno de 400 mil pessoas, com 30% inseridos no mercado de trabalho.
De acordo com levantamento do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), cursos de até 200 horas oferecem apenas a qualificação mínima às diversas funções – justamente a duração média dos cursos contratados pelo governo federal.
Os recursos com qualificação da mão de obra caíram, nos últimos anos, porque, segundo Ana Paula, “há maior rigor com a liberação de recursos”. Até 2002, diz, não havia a exigência das comissões municipais de trabalho intermediarem os cursos, e foi apenas a partir de 2008 que passaram a ser realizadas licitações para definir as instituições que oferecem as aulas.
Entre 1996, segundo ano do governo Fernando Henrique Cardoso, e 2002, o governo tucano gastou, em média, R$ 632 milhões por ano com programas de qualificação da mão de obra. Na mesma comparação, isto é, ignorando o primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, os gastos com qualificação da mão de obra foram de, em média, R$ 127,7 milhões por ano, ou 80% menos. A média do governo Lula foi ainda menor – R$ 119,4 milhões ao ano.
“Não faz sentido”, diz Leite, do Codefat, “que um governo que gerou 15 milhões de empregos formais gaste menos de 20% em qualificação do que investiu o governo anterior, cujo saldo de empregos formais foi inferior a 800 mil vagas em oito anos”.
Para João Saboia, professor do Instituto de Economia da UFRJ e especialista em mercado de trabalho, a falta de mão de obra qualificada não é um problema de cursos de qualificação, mas de educação básica e superior. “Há problemas pontuais, onde a qualificação é de fato um entrave para o crescimento, como no segmento da construção civil”, diz Saboia, “mas a maior parte das vagas com carteira assinada no país é criada para faixas que recebem até dois salários mínimos, para funções como operador de telemarketing e vendedor no comércio, onde só é exigido que o funcionário saiba falar português, basicamente”.
Nos 12 meses terminados em fevereiro, das 19,6 milhões de pessoas contratadas com carteira assinada, cerca de 85,7% foram admitidas para receber até dois salários mínimos. Apenas 1,5% foram contratadas para receber remuneração superior a R$ 2,7 mil – equivalente a cinco salários mínimos.