Acidentes com trabalhadores crescem 43% em 10 anos

Problemas que ocorrem no caminho para o serviço dobram no período

No momento em que o governo inicia um pente-fino em auxílios-doença e aposentadorias por invalidez e discute uma reforma trabalhista, dados do mais recente Anuário de Saúde do Trabalhador, elaborado pelo Dieese, mostram que o número de acidentes de trabalho registrados no INSS deu um salto de 43% em dez anos, somando 559 mil casos em 2013 (último dado disponível).

O acidente típico de trabalho — que ocorre na execução do serviço — é o mais comum, respondendo por 77% do total de casos. Mas o tipo que mais cresceu em uma década foram os acidentes durante o deslocamento casa-trabalho-casa, que dobraram no período. O total de acidentes de trabalho de trajeto passou de 49 mil para 111 mil. O número de afastamentos por esse motivo amentou de 22 mil para 47 mil em 2014. Para o Dieese, o aumento é reflexo do descompasso entre a formalização do mercado de trabalho e a qualidade do transporte público.

— O transporte público deficiente na grande maioria dos centros urbanos, agravado pela maior circulação de trabalhadores contratados, sem o correspondente investimento em melhorias, contribuiu para essa elevação — aponta Nelson Karam, coordenador dos projetos de Saúde do Dieese.

O número de acidentes registrados no INSS, no entanto, está longe de representar a realidade. De acordo com Karam, as empresas relutam em reconhecê-los para evitar prejuízos financeiros e à imagem. A última Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE, de 2013, mostrou, por exemplo, que os números de acidentes de trajeto eram quase 13 vezes o total apurado na pesquisa do Dieese, com base nos números registrados do INSS.

CONVÍVIO DIÁRIO COM O RISCO
Os acidentes de trajeto são os mais difíceis de serem reconhecidos, apesar de já haver jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito. Na avaliação de algumas empresas, elas só se tornam responsáveis a partir do momento em que o trabalhador inicia suas atividades. O ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra, reconhece “ser voto vencido” no TST, mas defende que o empregador seja responsabilizado apenas em caso de negligência, imprudência ou imperícia no transporte oferecido:
— Sustento que, em caso de acidente automobilístico provocado por terceiro, esse terceiro seja responsabilizado. Não o empregador.

A definição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é clara: acidente de trajeto é aquele que ocorre no caminho entre o local de trabalho e a casa do trabalhador, o local onde costuma comer e onde ele recebe sua remuneração, além dos ocorridos no deslocamento para cumprir uma tarefa de trabalho.

— Os riscos associados aos deslocamentos em veículos têm de ser geridos da mesma maneira que qualquer outro risco laboral identificado no interior da empresa — avalia Carmen Bueno, especialista de Saúde e Segurança no Trabalho do escritório Regional da OIT para a América Latina e o Caribe.

A Confederação Nacional da Indústria — que com 308,81 mil casos registrados em 2013 é o segundo setor com maior incidência de acidentes de trabalho — reconhece os acidentes de trajeto, mas entende que uma solução para reduzi-los está fora do alcance de programas de prevenção, segurança e saúde das empresas, segundo a diretora de Relações Institucionais da entidade, Mônica Messenberg. Por isso, pediu ao governo federal a exclusão dos acidentes de trajeto do cálculo do Fator Acidentário de Prevenção (FAP), pelo qual as empresas podem sofrer redução de 50% ou majoração de 100% na alíquota dos Riscos Ambientais do Trabalho (RAT) paga sobre a folha de pagamento, com base em índices de frequência, gravidade e custo dos acidentes. O pedido está sendo analisado pela Previdência. No setor, os acidentes de trajeto subiram 42% em sete anos, chegando a 35,2 mil ocorrências em 2013.

O pintor Thiago Alves de Jesus, de 28 anos, ficou seis meses afastado do trabalho recuperando-se de uma fratura no joelho direito. Ele se machucou ao cair de uma escada móvel de 2,5 metros de altura, usada para alcançar o teto da embarcação que estava lixando num estaleiro de Niterói. O acidente ocorreu em dezembro, conta, quando um colega puxou uma mangueira que estava enrolada em um dos pés da escada:
— Quem trabalha em estaleiro convive diariamente com o risco. Passam toneladas por cima da nossa cabeça. Mas a gente precisa de emprego e, na atual realidade, não dá pra escolher. A empresa tem um técnico de segurança, mas no meu setor faltava organização. Também não quiseram instalar o andaime pra pintura para agilizar o trabalho, e acabei usando a escada.

Apesar da alta expressiva dos acidentes de trajeto, são as doenças ocupacionais as que mais preocupam a OIT. Segundo a entidade, somente 14% dos 2,3 milhões de trabalhadores que morrem todo ano no mundo em razão do trabalho são vítimas de acidentes, frente a 86% de mortes como consequência de doenças ocupacionais, consideradas pela OIT como uma “pandemia oculta”.

— É preciso adotar um marco legislativo sólido e coerente, baseado na prevenção, fortalecer o diálogo entre governos, empregados e trabalhadores, os projetos e a aplicação de políticas e programas sobre o tema — aponta Carmen.

PAGAMENTO DE MULTA EM 62% DOS PROCESSOS
O setor de serviços concentra a maior parte dos acidentes de trabalho no Brasil. Foram 360,2 mil em 2013, ou metade do total registrado naquele ano, segundo o Dieese. Fábio Bentes, economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens e Serviços (CNC), avalia que trata-se de uma questão de proporcionalidade, já que 35% da mão de obra estão no setor de serviços, contra 16% da indústria, que apresenta mais riscos.

O anuário do Dieese mostra, porém, que houve queda nas taxas de mortalidade entre trabalhadores formais devido a acidentes de trabalho no período de 2004 a 2014, de 6,9 por cem mil trabalhadores para 3,8 por cem mil.

As doenças ocupacionais mais comuns são as ósseo-musculares e as psiquiátricas, mas a principal causa dos acidentes típicos são uma combinação de falta de fornecimento de equipamentos adequados pelas empresas e de negligência por parte dos funcionários, que muitas vezes ignoram as instruções de segurança, observa Ricardo Pacheco, vice-presidente da Associação Brasileira das Empresas de Saúde e Segurança do Trabalho (Abresst).

Em e-mail, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) informou ao GLOBO que é responsabilidade das unidades estaduais fiscalizar o cumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho por empresas de alto risco potencial e pelas de maior incidência. Só em 2014, o MTE aplicou R$ 1,72 bilhão em multas em razão do descumprimento da legislação trabalhista, inclusive de normas de saúde e segurança. Em média, as empresas recorrem em 45% dos autos de infração aplicados, e somente em cerca de 62% dos processos há pagamento da multa.

Os contribuintes da Previdência têm direito ao auxílio-doença quando sofrem acidente de trabalho e têm de se afastar de suas atividades por mais de 15 dias. Segundo o MTE, o número de contribuintes em 2014, dado mais recente, era de 54,8 milhões. Nesse mesmo ano, a Previdência gastou R$ 9,56 bilhões em pagamentos de benefícios por acidente de trabalho. Em dezembro de 2014, 861,13 mil pessoas recebiam esse tipo de benefício.