Valor Econômico
A indústria automobilística criou no Brasil uma capacidade de produção tão grande que mesmo que o país repentinamente revivesse um cenário macroeconômico próspero seria impossível preenchê-la. A utilização das fábricas do setor, abaixo de 50%, é a mais baixa dos últimos 25 anos. Um estudo da consultoria McKinsey indica que seria necessário “um inimaginável” crescimento de mercado de 10% ao ano nos próximos cinco para essa indústria funcionar com 80% da capacidade, percentual considerado saudável pelos executivos e analistas.
Não é exclusividade dos fabricantes de veículos enfrentar tempos difíceis com máquinas paradas e empregados em casa. Mas o problema é ainda mais grave nesse setor, responsável por 4% do Produto Interno Bruto brasileiro. A crise pegou as montadoras no exato momento em que se concluía um novo ciclo de expansão industrial.
O aquecimento da demanda por carros, que fez o mercado brasileiro saltar da décima para a quarta posição no ranking mundial entre 2005 e 2010, animou os fabricantes. Quem ainda não estava no país veio, embalado por nova onda de incentivos fiscais. E, como se aquele crescimento não fosse parar nunca mais, todas as marcas, sem exceção, ergueram as mangas e ampliaram instalações.
As montadoras têm hoje no Brasil 41 fábricas (incluindo as de motores), das quais oito foram inauguradas nos três últimos anos. Durante esse período, a capacidade anual aumentou de 4 milhões de veículos para 5 milhões. O total adicional de um milhão equivale praticamente à metade do mercado da França, o oitavo maior do mundo. A capacidade adicionada em três anos, e até agora não usada, é quase igual ao tamanho do mercado da Espanha.
A frieza dos números esconde, ainda, um problema social. Atinge pessoas que vivem do trabalho nessa indústria. Se as projeções da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea) se confirmarem, a indústria automobilística produzirá este ano muito menos com praticamente o mesmo número de funcionários de sete anos atrás.
Em 2009, 109 mil pessoas trabalhavam nas fábricas de onde saíram 3,07 milhões de veículos. Para 2016, a projeção mais otimista indica produção de 2,2 milhões de unidades com 108 mil empregados se o quadro efetivo de setembro for mantido até o fim do ano.
Nos últimos meses, as montadoras transformaram parte do efetivo em “funcionários fantasmas”. Licenças remuneradas, suspensão temporária, férias… Todo o tipo de ferramenta disponível foi usada para afastar o empregado ocioso da fábrica. O processo inclui o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), criado pelo governo para reduzir carga horária semanal e dar uma mão nesse momento.
Em nome da preservação de uma mão de obra especializada, o setor empurrou a necessidade de enxugar pessoal. Chegou a manter 35% do efetivo em casa. Há poucas semanas, atemorizados pela possibilidade de perder o emprego no futuro, muitos aceitaram aderir a programas de demissões voluntárias. E, com isso, a indústria automobilística apareceu como a principal responsável pelo aumento de desemprego na indústria paulista em setembro.
Em três anos, as montadoras, tão famosas pelo poder multiplicador de seus postos de trabalho, fecharam 27 mil vagas. E, segundo a Anfavea, 7,3 mil empregados ainda estão envolvidos dos programas de afastamento.
Esta não é a primeira vez que os fabricantes de veículos atravessam tempos difíceis. O estudo da McKinsey mostra várias ondas, que mostram períodos de turbulências, sempre seguidos por recuperação e novos tempos de bonança. O problema agora, lembra o presidente da McKinsey no Brasil, Vicente Assis, é que hoje há mais empresas participando desse jogo. “Mesmo que voltemos ao pico de 2013 haverá sobra de oferta porque mais fábricas foram construídas no período”, afirma o sócio da consultoria, Bjorn Hagemann.
Depois de um contínuo crescimento nas décadas de 60 e 70, veio a primeira grande crise no início dos anos 80, com retração de 46% no mercado brasileiro de veículos, que ficou, depois disso, estagnado por dez anos. Um programa chamado regime automotivo, com atraentes incentivos fiscais a quem construísse fora do circuito do Sudeste, marcou os anos 90. Entre 2001 e 2002 o setor passou por nova crise e o mercado interno encolheu 35%. A terceira onda vai de 2003 a 2016 e culmina com uma retração de 45% no comparativo dos últimos três anos. Para os analistas da McKinsey, “apesar de uma provável melhora nos próximos dois anos, a indústria precisará de uma nova década de crescimento da economia para voltar aos patamares de vendas de 2013”.
Sob o ponto de vista de engenharia, “não é lógico”, diz Hagemann, manter um parque industrial automotivo como o que existe hoje no Brasil. Mas é provável que os fabricantes pensem duas vezes antes de fechar uma fábrica. Essa decisão os obrigaria a arcar com penalidades por conta de incentivos tributários recebidos. Sem contar o trauma que viria com o fechamento de postos de trabalho.
Além disso, em termos de imagem, diz Hagemann, fechar uma fábrica soa como abandonar aquele que ainda é o sétimo maior mercado do mundo. Assis lembra que algumas montadoras demoraram a entrar no mercado da China e não conseguiram, depois, compensar o tempo perdido. “Empresas não se recuperam tão facilmente de traumas assim”, diz Assis.
“Foco no carro popular mascarou deficiências acumuladas e tirou o Brasil do mapa da concorrência mundial”
Não existe apenas um culpado pela atual situação. Crise econômica é, para muitos, a principal vilã. Períodos de recessão são o inimigo número um de um setor que só vende bem quando há crédito farto e clientes seguros em relação ao emprego. O economista Ricardo Bacellar, diretor da KPMG, lembra que um consumidor seguro não liga de arcar com o financiamento de um carro, por mais longo que seja.
Para Bacellar, a indústria não é a culpada pela atual situação. Segundo ele, as montadoras fizeram “o dever de casa”, principalmente para o aumento de eficiência na área de manufatura. “Os elementos necessários para a retomada não estão nas mãos da indústria”, destaca.
Foi também responsável pelo aumento da capacidade o Inovar-Auto, programa criado pelo governo federal, com ajuda de montadoras, para tentar proteger o parque local de eventual invasão de automóveis importados. Só ficou livre de carga tributária extra a montadora que tivesse fábrica no país obedecendo a critérios de nacionalização e outros quesitos, como produzir carros com mais itens de segurança e de redução de poluentes. Não houve empresa, entre as maiores, que não cedeu à sedução do programa.
“O Inovar-Auto foi bom, mas a obrigação da compra de peças locais não foi suficiente para o setor fortalecer-se”, afirma o presidente da Anfavea, Antonio Megale, em referência à toda a cadeia, incluindo os fornecedores.
Junto com o programa protecionista também vieram as frustrações. A Honda informa não ter previsão de quando vai começar a usar a fábrica em Itirapina, no interior de São Paulo, pronta e vazia desde outubro de 2015. A crise fez a multinacional japonesa desistir da inauguração.
Na análise da McKinsey, as montadoras também têm sua parcela de culpa por terem colocado foco excessivo na venda de carros mais simples, os chamados populares. Para os consultores, isso “mascarou deficiências acumuladas” e tirou o Brasil do mapa da concorrência mundial.
Megale defende o setor. Segundo o dirigente, a tendência mundial é por carro menores com mais conteúdo tecnológico e o Brasil se aperfeiçoou principalmente na área de motores. “A economia tem agora que melhorar para que as camadas mais baixas voltem a poder comprar carros”, afirma.
O setor também não tem tido muita sorte com a exportação, caminho natural para ocupar as linhas de montagem e ajudar reduzir o fantasma da ociosidade.
Mas o setor enfrenta dificuldades para exportar até para países vizinhos. No Peru, que importa todos os veículos vendidos no país, por exemplo, a participação do Brasil caiu de 4% para 2% entre 2011 e 2014. Em contraste, 70% dos carros vendidos no mercado peruano chegam da Ásia.
Nos últimos 15 anos, a fatia das exportações na produção de veículos no Brasil passou de 22% para 16%. O quadro mostra que a fraqueza no exterior independe da taxa cambial. A participação das vendas externas manteve-se inalterada tanto em 2010, com real forte, como em 2015, na forte desvalorização.
O Brasil já foi um exportador forte. Mas o mercado interno cresceu e tirou o foco”, diz Megale. Responsável ou não pelo fantasma da ociosidade, a indústria automobilística enfrenta o desafio de ter que, como diz Assis, “repensar seu modelo de negócio”. Do contrário, será difícil conviver com tantos espaços vazios.