A crise é permanente, mutante e contagiosa

Tony Volpon

Normalmente pensamos em “crise” como algo instável, um processo de transição entre uma situação que não mais se sustenta e uma nova, em que as contradições se resolvem e a estabilidade se restabelece.

Mas será que a crise não se tornou a nossa normalidade? Podemos imaginar a crise não como processo, mas sim como estado, um processo que se autoalimenta e assim se sustenta?

Gostaria de defender essa tese sobre a crise que estamos vivendo. A crise que enfrentamos, em sua essência, não é uma anormalidade que devemos procurar superar. Na verdade, ela define os tempos que vivemos. Isso não implica, necessariamente, que estejamos condenados a um mal-estar permanente. Na etimologia original da palavra na língua grega, “krisis” também significava decisão e poder de escolha. Vou defender a ideia de que isso ocorre na situação atual.

Mas, infelizmente, devemos reconhecer que a crise agora chegou ao Brasil, ou melhor, aos emergentes. Não é por acaso que hoje vemos forte desaceleração de crescimento na maioria das grandes economias emergentes, não somente no Brasil, mas também na China e na Índia.

A crise atual não se diferencia somente por seu caráter permanente. Ela também é mutante e contagiosa. Seu “ground zero”, seu ponto de início, não se deu por aqui, mas ela chegou. E, para entender sua essência, devemos voltar ao ponto de origem, isto é, aos Estados Unidos.

Pax americana
A ordem econômica mundial estabelecida com o fim da Segunda Guerra Mundial, tendo os Estados Unidos como poder hegemônico, iniciou um período de estabilidade que, do ponto de vista atual, parece mais e mais como uma época de ouro. A Guerra Fria, com todos os seus riscos apocalípticos, foi no fim do dia, do ponto de vista econômico, pouco relevante.

Nessa nova ordem mundial, todos tinham seu lugar. Os Estados Unidos e os países desenvolvidos detinham a dianteira tecnológica e científica, assim alimentando sua indústria em contínuo processo de crescimento e inovação. Países periféricos, carentes da densidade institucional para concorrer com os desenvolvidos, assumiam lugar subordinado, alguns tendo a sorte de produzir algum tipo de matéria- prima. Ter essa sorte possibilitou maior integração à economia mundial, permitindo, assim, importar manufaturados ou até arriscar a construção de uma capacidade industrial local.

Essa divisão internacional do trabalho foi responsável pela ascensão da grande classe média consumidora nos países desenvolvidos. Por força do processo democrático, os trabalhadores nos países desenvolvidos aumentaram de forma contínua seus rendimentos, o que, pelo crescimento da produtividade, criou um círculo virtuoso de desenvolvimento. Contra tudo que pregava a visão marxista de um embate necessário entre as classes, capital e trabalho andaram juntos nos anos 1950 e 1960 nos países desenvolvidos.

Mas, muito em sintonia com o conceito marxista de que a base tecnológica determina a superestrutura política, social e ideológica, a partir dos anos 1970 um conjunto de desenvolvimentos possibilitou a crescente internacionalização da economia global, especialmente a industrial. De maneira crescente, o processo de produção não estava mais atado a algum local, mas poderia se espalhar, buscando nichos de vantagem competitiva. O pacto econômico e social nos países desenvolvidos entre capital e trabalho começou a se dissolver.

Apesar de ser um processo gradual, ele se acelerou de forma vertiginosa com a entrada da China como plataforma manufaturadora da economia global. Não devemos perder de vista a grande ironia de que foi justamente um país nominalmente comunista que transformou a face do capitalismo global, juntando a disciplina maoísta de sua força de trabalho com a mais “neoliberal” política de abertura para o comércio exterior e os investimentos estrangeiros.

A globalização chinesa
A ascensão econômica chinesa é certamente uma das mais importantes causas do esvaziamento e declínio da indústria dos países desenvolvidos, da decadência da classe média, do crescimento da desigualdade de renda, bem como da falta de sustentabilidade de seus generosos sistemas de previdência social. Cada um desses fenômenos é decorrente do outro, um resultado do rearranjo da economia global, em que o capital se alinha onde há mais ganho, sem limitações geográficas.

Já ficou bastante claro que o grande salto da economia brasileira nos últimos anos tem tido como motor principal o desenvolvimento chinês. Por uma variedade de canais de riqueza e renda, a simbiose entre nosso país, rico em toda variedade de matérias-primas, e a voraz demanda chinesa possibilitou uma mudança no nosso padrão de desenvolvimento. Somos sócios privilegiados da globalização chinesa.

Apesar de os dados mostrarem claramente que a decadência da classe média americana já vem dos anos 70 e 80 do século passado, os mesmos avanços tecnológicos que permitiram a difração do processo produtivo em múltiplas partes espalhadas ao redor do mundo também permitiram uma enorme sofisticação dos mercados financeiros. Isso possibilitou a crescente alavancagem de renda dos americanos, aumentando seu consumo na base do crédito, e assim criando um falso senso de bem-estar que escondeu, econômica e politicamente, uma crescente deterioração da renda real. Como hoje sabemos, tudo resultou numa enorme bolha imobiliária e de crédito.

Na Europa, a dinâmica foi um tanto diferente, mas não o resultado. A união econômica imaginada ao redor do euro junta economias díspares em um projeto de convergência. Mas a moeda única não funcionou como mecanismo de convergência e, sim, de divergência.

As economias do Sul se endividaram a um custo igual ao das mais avançadas economias do Norte, possibilitando um boom de consumo que elevou o custo do trabalho. Isso aumentou fortemente a já grande divergência de competitividade entre as duas regiões do continente. Com isso, tivemos mais uma crise de dívida, nesse caso não somente dos setores privado e bancário, mas também uma crise soberana.

A crise chega aos emergentes
As dinâmicas descritas acima parecem colocar os países emergentes em lugar privilegiado nessa nova ordem econômica mundial. Isso tem sido aceito como um lugar-comum, e muitas políticas e estratégias de negócio (por exemplo, a popularidade dos Brics, grupo de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como tema de investimento) acabaram tendo essa aparente obviedade como parâmetro central.

Por isso, a questão mais urgente hoje não são os últimos desdobramentos da crise europeia ou os derradeiros movimentos do Federal Reserve (Fed), o banco central americano. A questão mais urgente é a desaceleração do crescimento nas grandes economias emergentes, em especial na China e no próprio Brasil.

Acredito hoje ser possível postular que há algo em comum nesse processo, apesar da grande disparidade de condições entre as grandes potências emergentes e os países desenvolvidos.

Nos países desenvolvidos, a crise foi o desdobramento final de um processo longo onde houve uma fundamental ruptura de interesses entre uma elite hoje globalizada e uma classe média e trabalhadora local. Essa ruptura, apesar de ter uma base tecnológica, foi fundamentalmente política. Vemos nisso uma falha no processo democrático, na sua incapacidade de articular um projeto nacional frente a uma economia crescentemente global. Mas nada aconteceu por acaso. Isso decorreu de escolhas políticas.

Vemos uma repetição desse processo hoje nos emergentes. Cada uma das grandes potências emergentes já colheu os ganhos fáceis da nova globalização, mas agora enfrenta problemas estruturais para garantir a continuidade do seu desenvolvimento, para qual, o processo político não tem achado respostas adequadas.

No caso chinês, isso tem a ver com a necessidade de trocar um modelo de crescimento demasiadamente concentrado no investimento por um baseado no consumo, processo que encontra grande resistência na elite que circula entre o Partido Comunista, governo e o setor estatal, que têm a base de sustentação do seu poder no modelo centrado nos investimentos.

O Brasil enfrenta o desafio contrário. Tem que transformar um politicamente popular modelo de crescimento baseado em consumo em outro, focado em investimento e competitividade.

É na incapacidade política de responder na velocidade necessária a um conjunto de mudanças tecnológicas e econômicas que encontramos a essência da crise atual. Hoje isso não mais se limita ao mundo desenvolvido, já vemos com clareza os efeitos nos emergentes, que não podem dar respostas políticas e institucionais adequadas à rápida mudança de circunstâncias impostas pelas tecnologias modernas.

E é exatamente por isso que não podemos pensar no atual estado de crise como algo passageiro: o hiato entre a política e a tecnologia, entre a política e os mercados, não deve ter fim.

Previsões, previsões
O que diz essa conceituação da crise sobre o que deve acontecer doravante? Devemos de antemão reconhecer que uma das principais características do nosso tempo é a sua enorme complexidade, fazendo qualquer tentativa de previsão algo heroico, senão impossível. Mas uma coisa me parece clara: a economia coloca o problema, mas a solução terá que ser política.

No caso da China, a recente queda de sua taxa de crescimento deve ser vista como sendo mais estrutural e permanente do que cíclica. A relutância da liderança do Partido Comunista em lançar mais um programa de investimentos evidencia não só um delicado momento de transição política, mas o reconhecimento de que os resultados dessa política de investimento tendem a ser marginalmente decrescentes.

Não devemos desprezar as dificuldades de se trocar um modelo baseado em investimento por outro, amparado por exportações e consumo – nenhum dos países asiáticos mais desenvolvidos conseguiu fazer isso com pleno sucesso. Fora as dificuldades de enfrentar os grupos que hoje desfrutam do modelo atual, há o fato de que o desafio de qualquer processo de liberalização, como tem que acontecer no setor financeiro, normalmente aumenta os riscos macroeconômicos.

Enquanto não devemos desprezar a capacidade da sociedade chinesa de achar soluções para seus problemas, essas dificuldades, somadas a uma já esperada implosão demográfica, devem taxar enormemente a sua capacidade de adaptação. Nos próximos anos, um crescimento perto de 7% deve ser visto como um bom resultado na China, e não devemos nos surpreender quando a taxa for de fato menor.

Na Europa, a crise é de superendividamento, com suportes institucional e político inadequados para sustentar uma união europeia. Para resolver a questão da dívida, teremos que ver um “encontro de contas” entre os credores do Norte e os devedores do Sul, algo que passa pelos vários programas de ajuste já em curso.

Mas há limites políticos e sociais para o volume de recursos que serão repassados dos devedores para os credores e a velocidade em que isso vai ocorrer. Esses limites mudam ao longo do tempo. Há uma tendência de o prolongamento da recessão nos países devedores diminuir os limites do ponto de vista político. O recente pacote de ajuda do Banco Central Europeu (BCE) deve garantir tempo para a negociação política dessas transferências e, ao mesmo tempo, construir o suporte institucional necessário à consolidação da moeda única.

Mas o problema central persiste: não há como criar essa estrutura institucional sem substancial perda de soberania nacional. Apesar disso, o terror do caos que se instalaria no continente com a dissolução do euro deve ser suficiente para levar todos os envolvidos a ceder no que for necessário. Mas o processo será bastante complicado e longo.

Talvez, surpreendentemente, o melhor colocado economicamente para superar seus problemas sejam os Estados Unidos, o “ground zero” da crise. De todos os grandes blocos econômicos, têm a melhor situação demográfica. Seus problemas fiscais, por maiores que sejam, podem facilmente ser resolvidos a tempo com um razoável mix de corte de despesas e aumento de receita. E, depois de anos de queda de sua moeda, sua indústria parece ter recuperado certa competitividade. Além disso, sua capacidade de inovação tecnológica ainda é amplamente superior à de qualquer rival.

Apesar dessas vantagens, o desafio de achar um consenso em uma sociedade tão dividida, em meio a partidos crescentemente antagônicos, pode prolongar ou mesmo piorar a crise. O possível “fiscal cliff” será um importante teste para se descobrir se, apesar de tudo, ainda existe racionalidade na política americana.

E o Brasil? A boa notícia é que o baixo crescimento deste e do último ano acabou finalmente com a falsa euforia e colocou no centro do debate questões como a competitividade e a necessidade de se pensar na oferta e não somente na demanda econômica.

Para vencer essa agenda, certos preconceitos políticos, em relação às privatizações e ao tamanho do Estado, por exemplo, precisam ser superados. Precisam ser vencidos os interesses dos grupos que desfrutam de vantagens do modelo atual, assim como ocorre na China. Sem isso, parece que estaremos condenados a ter uma taxa de crescimento potencial mais perto de 3% ao ano do que de 4% ou mais, o que não exatamente se configura como um desastre, mas é bem menos do que podemos atingir. Afinal, a escolha será nossa, como no caso também dos outros países.

Na economia globalizada de hoje, o que conta é flexibilidade e rapidez de ação: o que foi ontem uma vantagem pode ser hoje uma desvantagem, o que foi um ponto forte pode virar uma fraqueza. O tempo da política sempre será necessariamente mais lento que o do mercado, mas admitir isso não implica aceitar que nossos sistemas políticos fiquem indiferentes à necessidade de responder prontamente aos desafios atuais. A crise pode ser uma condição permanente dos nossos dias, mas como bem sabiam os gregos antigos, ela no fundo implica que temos escolhas a fazer.

Tony Volpon é diretor da Nomura Securities International, Inc.

Este é o nono de uma série de artigos sobre a crise econômica atual e seus prováveis desdobramentos no mercado internacional e no Brasil, feitos por renomados economistas a pedido do Valor.