Por Luís Camargo
A aprovação pelo Senado da República da Proposta de Emenda Constitucional nº 57A, de 1999, ocorrida nesta semana, é motivo de orgulho para o Brasil.
Razões de ordem humanitária motivam o combate ao trabalho escravo contemporâneo. Razões de ordem econômica também. Trata-se de proteger o empregador que cumpre a lei contra a concorrência desleal praticada pelo patrão que não a observa. Para se ter uma ideia, no setor de costuras, onde comumente encontramos trabalhadores imigrantes superexplorados, laborando 16 horas por dia, de segunda a sábado, com salários mensais abaixo do piso da categoria, estima-se uma vantagem competitiva mensal de pelo menos R$ 2,3 mil por trabalhador auferida por quem se beneficia desse sistema. Assim, se a oficina tiver 20 costureiros, é como se a cada mês o estabelecimento tivesse uma vantagem concorrencial de R$ 46 mil, não restando aos competidores outra alternativa senão fechar as portas ou assimilar as mesmas práticas.
Portanto, quando se combate o trabalho escravo, não se está a tutelar uma vítima isoladamente considerada, mas todo um setor da economia.
O Ministério Público do Trabalho, evidentemente, não pode permitir a manutenção de trabalhadores em condições laborais degradantes, ofensivas aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho; nem tolerar que o empregador cioso da observância das leis seja prejudicado por quem acintosamente a descumpre.
Neste sentido, não apenas os trabalhadores, como também os empresários que seguem os parâmetros fundamentais de proteção do trabalho digno têm motivos para se orgulhar e se unir em prol de um novo parâmetro de combate ao trabalho escravo, que favorecerá toda a sociedade. O Brasil tem uma das legislações mais efetivas em todos os cinco continentes contra o trabalho escravo contemporâneo.
Respeitado o devido processo legal, a decretação da pena de perda da propriedade, seja urbana, seja rural, representa um avanço no combate à escravidão contemporânea, pois elimina-se a “premiação” que, nos dias atuais, ocorre com os processos de desapropriação fundiária. Agora, a propriedade será confiscada. E é uma constatação prática que o receio de um gravame patrimonial incutirá maior receio ao descumpridor contumaz da legislação do trabalho que o temor por uma eventual persecução criminal.
A notícia da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional, que alterará o artigo 243 da Constituição da República, foi bem-recebida pelos delegados da 103ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho, em curso, em Genebra. No evento, os delegados obreiros, governamentais e patronais discutem – e votarão – um novo documento para o enfrentamento ao trabalho forçado no mundo. Nossa presença em Genebra está contribuindo com a discussão e é imperativo, como um próximo passo, a internacionalização de nossas boas práticas no combate ao trabalho escravo. Afinal, como ocorre na microeconomia, no plano macroeconômico a eventual licenciosidade de algumas nações quanto ao trabalho escravo também acarreta “dumping social”. Vale frisar que na redação prenunciada do novo documento a ser concebido pela OIT enfatiza-se a análise econômica de direitos e a questão da “fair competition”.
Estamos atentos para não permitir retrocessos na legislação, uma vez que o Brasil é apontado pela OIT como expoente no combate e na erradicação do trabalho escravo no mundo contemporâneo.
Ressalte-se que a definição de trabalho escravo contemporâneo já está suficientemente clara no artigo 149 do Código Penal. O texto legal decreta pena de reclusão de dois a oito anos, além de multa, a quem reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados, quer submetendo-o à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto. A pena é aumentada de metade, se o crime for cometido contra uma criança ou um adolescente ou por motivo de preconceito de raça, de cor, de etnia, de religião ou de origem. Para o Ministério Público do Trabalho, o conceito é límpido e claro. Mesmo assim, poderá sofrer perigoso retrocesso.
Apesar de tramitar há quase duas décadas no Congresso Nacional, a proposta somente foi aprovada agora, em dois turnos, no Senado da República. Houve uma concertação, um acordo político suprapartidário, para votar e aprovar a proposta de emenda constitucional. Aclamada em dois turnos, esse acordo político levará agora à discussão de um projeto de lei para regulamentá-la.
Ocorre que o bom exemplo de enfrentamento do trabalho escravo que o Brasil tem mostrado ao mundo corre o risco de retroceder se o Projeto de Lei do Senado nº 432/2013 for aprovado da forma como vem sendo apontado por lideranças ligadas à bancada dos ruralistas no Congresso Nacional. A proposta dessas lideranças é retirar do Código Penal a responsabilização pelo crime de redução a condição análoga a de escravo fundamentada em ambientes degradantes e na jornada exaustiva, elementos típicos do conceito de trabalho escravo contemporâneo, esvaziando-o por completo.
Assim, se a condição degradante sair da tipificação do crime de submissão de pessoas ao trabalho escravo contemporâneo, o Brasil registrará, com todas as letras e cores, atraso no enfrentamento à escravidão moderna. Preocupa-nos, sobremaneira, por tudo isso, a aceleração do debate e da votação açodada desse projeto de lei no Congresso Nacional.
Luís Camargo é procurador-geral do Trabalho, membro do Ministério Público do Trabalho desde 1989, professor de direito do trabalho no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb) e especialista em trabalho escravo contemporâneo