Belo Monte avança, mas Altamira vive impasse

Por Daniela Chiaretti e André Borges | De Altamira e Brasília

Daniel Beltra/Greenpeace

Área conhecida como sítio Pimental, no rio Xingu, onde ficará o reservatório da hidrelétrica de Belo Monte: cronograma de construção prevê que a primeira unidade geradora comece a operar em 2015

ALTAMIRA E BRASÍLIA – Há poucos meses, Altamira era uma cidade de 100 mil habitantes entre o rio Xingu e a Transamazônica, com apenas um semáforo, 17 mil carros e um monte de problemas. Em menos de um ano, ganhou faróis inteligentes, guardas de trânsito e até um helicóptero, mas no pacote também vieram o tráfego caótico de 30 mil veículos, 45 mil novos moradores e outro monte de problemas.

O marco divisório foi a decisão de instalar na região a terceira maior hidrelétrica do mundo, Belo Monte. Na cidade, a vida segue sem saneamento básico, a educação é precária, água limpa é para poucos, o sistema de saúde funciona mal para todos. Enquanto isso, a algumas dezenas de quilômetros dali, o trabalho nos canteiros da usina exibe avanços bem visíveis. A comparação entre o frenesi de lá e o impasse de cá produz uma queixa consensual na população: há muito descompasso entre o ritmo da construção da usina e a lentidão em atender às demandas urbanas.

Na Prefeitura de Altamira, um cálculo feito sobre o aumento da produção de lixo e a demanda crescente de pacientes no hospital estima que a cidade tem hoje 145 mil habitantes. O poder de atração da hidrelétrica é imenso, e o movimento migratório multiplica problemas históricos da região.

“Fora alguns avanços na engenharia de tráfego e em equipamentos de segurança, não foi feito nada”, diz um representante do município que prefere não se identificar. Ele lista: é preciso fazer 261 quilômetros de rede de esgoto, outro tanto de rede de água, definir os locais onde 7.000 famílias serão realocadas, acelerar a construção de salas de aula, construir unidades básicas de saúde, e tudo com urgência.

“Conseguimos, com lentidão, sete ou oito reformas de escolas, quatro unidades básicas de saúde. Mas tudo isso devia ter sido feito cinco anos antes de a obra começar”, reclama. “A primeira atitude que a empresa deveria ter era de fazer um hospital de campanha”, diz.

“Eu não concordo que as duas obras estejam andando em ritmo diferente. Cada uma está em seu ritmo adequado”, rebate João Pimentel, diretor de relações institucionais da Norte Energia, responsável pela construção e operação da hidrelétrica de Belo Monte. “O que a população de Altamira provavelmente reclama são demandas históricas.”

Ele lembra a trajetória da cidade centenária, que viveu um ciclo de desenvolvimento nos anos 70, outro com a exploração de madeira (basicamente ilegal e que sofreu com o fechamento de serrarias na Operação Arco de Fogo, em 2008) e todo o resto do tempo no limbo. “A cidade cresceu e durante anos não houve investimentos e políticas públicas”, prossegue Pimentel. “A Norte Energia ficou sendo esperada como se fosse um messias, que salvaria a cidade dos anos de abandono.”

Ao tornar-se o empreendedor de uma obra estimada em mais de R$ 20 bilhões, a Norte Energia também herdou essa fatura gigante. Assumiu o compromisso de executar um complexo pacote com centenas de obras sociais e ambientais, de prazos, tamanhos e valores diferentes, para mitigar e compensar o impacto de Belo Monte sobre os 11 municípios da região. É aí que estão os problemas.

Há o andamento das condicionantes estipuladas nas várias fases do licenciamento. Existem ações previstas no Plano Básico Ambiental (PBA) para preparar a região para a obra, reduzir danos e construir infraestrutura – a previsão é gastar aí até R$ 3,3 bilhões. Existe o item das compensações ambientais, que deve ser aplicado em unidades de conservação. E há, ainda, o Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu, o PDRS. Este cipoal de necessidades esbarra em dificuldades de todo o gênero. O resultado é que a população se sente frustrada.

“A obra está andando muito bem”, diz Vilmar Soares, coordenador de relações institucionais do Fort Xingu, que reúne 178 empresas, igrejas, movimentos de bairros, sindicatos e associações. “Acho que a obra é boa para uma região que não tinha perspectiva nenhuma. Vai dar problemas, mas o saldo positivo será maior que o negativo. A usina trará dinamismo”, continua. No presente, no entanto, ele diz que não houve melhoria em quase nada. O projeto de saneamento básico sequer foi iniciado. Na área da saúde, foram investidos apenas R$ 20 milhões dos R$ 500 milhões previstos no PDRS. “A obra está andando, mas a Norte Energia está muito devagar aqui.”

Há gargalos que surgiram da própria corrida de migrantes em busca de trabalho. A telefonia, que era ruim, piorou com mais celulares. A rede bancária tem apenas seis agências, sempre com filas enormes. A saída para pagar os trabalhadores foi montar uma solução emergencial no clube local. Mas os trabalhadores saem com dinheiro no bolso e correm o risco de serem assaltados na esquina.

Altamira registra um boom de construção civil. Há 1.700 construções ou reformas com alvará. Todos querem aproveitar o movimento que a usina produz na cidade. Mas não existe mão de obra disponível, e quando tem, é cara. O restaurante O Caipirão, de Roselane da Luz Nogueira, abriu há dois anos e meio e atendia 38 clientes. Hoje, tem 182 lugares.

“Jamais posso falar mal da obra, está sendo ótimo para mim”, diz a dona da única cozinha industrial da cidade, feita para atender à demanda por marmitas do consórcio construtor. Chegou a fornecer 3.800 marmitas por dia. “Mas o lado social é preocupante. Daqui a pouco pode haver um colapso.” Roselane diz que tem plano privado de saúde, mas ali não há médicos e outro dia teve que recorrer ao hospital municipal. “Vi o tanto que está difícil para aquela gente humilde, que já é muito sofredora.”

“Sabe quanto está o quilo do feijão aqui?” pergunta Adriano de Paula Lima, recepcionista do hotel Augustus. “Quase R$ 6!”, responde. “Não há benefícios na cidade, as coisas só aumentaram” e vai listando o aumento de gastos com a cesta básica e o aluguel. “Agora estão contratando. Mas e quando começarem a demitir?”

A sigla CCBM é onipresente em Altamira. Trata-se do Consórcio Construtor Belo Monte, formado por dez das maiores empresas de construção pesada do país, da Andrade Gutierrez à Camargo Corrêa e Odebrecht. O CCBM foi contratado pela Norte Energia para executar as obras da usina, que terá capacidade instalada de 11.200 MW. Já foram contratados 7.000 trabalhadores (a metade de Altamira), logo serão 12.000 e em 2013, no pico das obras, 22.500. Naquele momento, estima-se que o consumo de carne será de 95 toneladas no mês, 65 toneladas de frango e 410 toneladas de cereais. O volume de concreto a ser usado construiria 48 Maracanãs. Por essas cifras é possível imaginar a magnitude do impacto de Belo Monte.

O cronograma de construção prevê a primeira unidade geradora em funcionamento em 2015, e a última, em 2019. Se tudo correr conforme a planilha, o maior feito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) terminará no fim da década. Apenas 7% do empreendimento ocorre em Altamira. Na cidade foi instalado o centro de capacitação – que já treinou 2.500 pessoas, de pedreiros a operadores de máquinas. A hidrelétrica ficará em Vitória do Xingu, povoado de 10 mil habitantes e orçamento anual de R$ 15 milhões. Só com o ISS, seus cofres receberão este ano perto de R$ 50 milhões.

Há três grandes frentes de obras, o que dá velocidade à construção. Distantes dezenas de quilômetros umas das outras estão o sítio Pimental (onde ficará o reservatório), o sítio Canais e Diques (com o famoso canal de 20 quilômetros de extensão e 500 metros de largura), e o sítio Belo Monte, abrigo da casa de força principal.

A reportagem visitou um dos canteiros, o sítio Canais e Diques. O acesso é pelo travessão 27, antiga trilha que começa na Transamazônica e abria caminho para agricultores entre remanescentes florestais e pastagens. Agora é uma estrada larga, ainda de terra, mas sem buracos e em constante manutenção. No canteiro, há 2.000 pessoas trabalhando, cerca de mil alojadas em grandes tendas brancas. Os alojamentos definitivos estão em construção. O projeto prevê casas em PVC dispostas em uma minicidade, com quadra de lazer, agência bancária, cinema e lojas.

Na obra, a terra que está sendo retirada na escavação do canal é usada na terraplenagem. O canal já está aberto na altura do km 13. São 500 metros entre as margens. É visão impressionante: para quem está na borda e espia à frente, os caminhões e máquinas parecem de brinquedo.

Os avanços em obras urbanas são tímidos. Um comitê gestor do PDRS, que inclui governo e sociedade civil, e está vinculado à Casa Civil da Presidência, se reúne todos os meses para acompanhar o plano. O comitê procura gerir o dinheiro que financia os projetos socioambientais ligados a Belo Monte e acompanhar seu andamento.

Apesar das dificuldades de consenso, o comitê sustenta que tem avançado em algumas obras. Em 2011, foram aprovados 30 projetos para a região, com orçamento de R$ 28 milhões. Todos estão em execução, informaram em e-mail ao Valor. Estão sendo construídas cinco unidades básicas de saúde e está em curso um projeto de regularização fundiária, por exemplo.

O orçamento total a ser gerenciado pelo comitê é de cerca de R$ 4 bilhões, dos quais R$ 500 milhões estariam atrelados à entrega das condicionantes ambientais. A prioridade do comitê para este ano é a definição de um pacote de planos regionais para a saúde, educação, segurança e o desenvolvimento de cadeias produtivas.

Segundo dados de março da Norte Energia, os investimentos nos 11 municípios atingidos por Belo Monte alcançaram R$ 165 milhões em áreas sociais e ambientais, o que é parte das condicionantes. “O que está havendo é a combinação de dois elementos”, diz Pimentel, da Norte Energia. “De um lado, a enorme demanda da cidade e a ansiedade que a empresa resolva coisas que hoje eles não têm”, diz. “Do outro, a falta de capacitação das prefeituras na execução das obras”.

Pimentel diz que há um cronograma para as obras e a intenção de privilegiar empresas locais, o que às vezes é complicado. Ele garante que há muito em andamento. Cita, por exemplo, o plano de combate à malária – um investimento de R$ 37 milhões, para serem gastos em seis anos.