Cliente desaparece e carros encalham

Por Aline Lima, Eduardo Laguna e Marli Olmos | De São Paulo

Ana Paula Paiva/Valor / Ana Paula Paiva/Valor
Fábio Faraj, da Trans-Am veículos em São Paulo: sem clientes, vendedor passa o tempo polindo o capô do carro

Munir Faraj e o filho Fábio, que trabalham com compra e venda de automóveis, sentem calafrios só de lembrar que o Vectra preto 2009 já passou dois natais com eles. Quase um “membro da família”, o veículo que chegou na loja em 22 de dezembro de 2010, só deu despesa. Ganhou pneus novos e rodas de liga leve para chamar a atenção dos clientes. Há poucos dias, apareceram dois interessados. Mas em ambos os casos, os bancos negaram crédito para o financiamento. E o Vectra permaneceu com a família Faraj.

“Tivemos que refazer a pintura de tanto que os vendedores passaram o pano no capô para dar brilho”, conta Munir. A cena da devolução de ficha se tornou comum desde que os bancos, assustados com o aumento da inadimplência, se tornaram mais seletivos. A taxa de inadimplência acima de 90 dias em veículos está em 5,7%, o maior patamar da série histórica do Banco Central.

Em março, a inadimplência entre 15 e 90 dias chegou a 8,5%, a mais alta desde outubro de 2011 se o resultado for analisado mês a mês. Na comparação com os meses de março, que tira efeitos sazonais, o índice é o mais elevado desde 2009, pico da crise internacional.

“As financeiras diminuíram significativamente os juros, mas nem assim o consumidor tem aparecido”, afirma Paulo Pacito, outro empresário do comércio de veículos. Ele lembra que o crédito só é aprovado para o cliente que oferece baixo risco. O financiamento sem entrada praticamente não existe mais. “Somente para aquele cliente com ´score´ bem alto e garantias substâncias, risco zero”, diz Pacito, proprietário de loja de veículos que leva o mesmo nome.

“O crédito só está sendo liberado para quem não precisa dele”, destaca o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Cledorvino Belini. O aumento do nível dos estoques de veículos novos – o maior dos últimos três anos – levou algumas montadoras de veículos a reduzir o ritmo nos últimos dias, por meio de licenças não remuneradas. Segundo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Volkswagen e Ford adotaram a semana de quatro dias. As horas extras foram cortadas em alguns casos e o recurso do banco de horas tem sido utilizado com frequência. A produção da indústria automobilística caiu 7,5% em abril na comparação com igual mês em 2011.

Já no setor de motocicletas, mais sensível às condições de crédito, o efeito já aparece na redução de número de postos de trabalho nas fábricas de Manaus. Segundo o sindicato local, 1,06 mil empregados foram desligados entre janeiro e abril, quase o dobro das demissões de um ano antes (583 pessoas).

A Honda, a maior do segmento, com quase 80% do mercado, informa que 591 operários deixaram a fábrica nos quatro primeiros meses do ano e que, devido ao cenário de crédito mais seletivo, só irá repor “eventuais desligamentos voluntários” em momento oportuno.

Já a Kasinski realizou um corte de 20% de seu efetivo, o que corresponde a eliminação de 250 vagas, diz o diretor comercial, Rogério Scialo. “Ainda vemos um cenário ruim no segundo semestre”, prevê. Segundo ele, apesar do corte nas taxas de juros, os bancos aumentaram os filtros da análise de crédito, agregando informações como endereço de parentes.

Segundo a Abraciclo, entidade que representa as montadoras de motos, o financiamento pelas linhas de Crédito Direto ao Consumidor (CDC) representa 52% das vendas. Apenas 21% dos negócios são fechados à vista e o restante – 27% – é feito por consórcio. “O parcelamento, portanto, é fundamental. Sem ele, o setor emperra”, diz José Eduardo Ramos Gonçalves, diretor-executivo da entidade. Só em abril, a produção de motos recuou 18,4% em relação ao mesmo período de 2011, para 145,69 mil unidades. Na mesma base de comparação, as vendas de motos no atacado – do fabricante para a concessionária – caíram 20,2%, totalizando 138,6 mil unidades.

 

Os bancos de montadoras seguiram o rastro das demais instituições financeiras, tanto estatais como privadas, e reduziram, há poucos dias, as taxas de financiamento. Há expectativa no setor de que esse movimento não só estimule as vendas como também traga de volta consumidores com melhor perfil de risco, que ao longo de 2011 tendeu a postergar a compra do carro novo.

A maioria dos revendedores, porém, está pessimista em relação aos próximos meses por conta da rigidez que os bancos vêm demonstrando na hora de conceder financiamento. O Valor conversou com cinco concessionárias de diferentes capitais e todos afirmaram que os financiamentos em 60 meses estão cada vez mais escassos. A preferência é por 48 meses. A exigência de 20% de entrada – no mínimo – é também terminante.

O corte promovido pelos bancos nas taxas para financiamento de veículos girou em torno de 15% a 20%. Se antes o juro mensal variava entre 1,10% e 1,40%, em média, agora está entre 0,90% e 1,20%. “Houve uma explosão de demanda nos últimos anos mesmo com taxas altas. Não é esse o problema”, avalia Marcos Goldstein, da revendedora Saganor, de Fortaleza.

Para Décio Carbonari, presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras de Montadoras (Anef), as novas taxas deverão cativar clientes de maior renda que, no ano passado, por conta das medidas tomadas pelo governo para “segurar” a inflação, adiaram a troca do veículo. “O inadimplente não será atraído por juro baixo”, diz.

Até 2009, 60% das propostas aprovadas pelos bancos de montadoras eram de clientes das classes A e B, segundo Carbonari. Atualmente, a participação desse público caiu para 50%.

As políticas de concessão de crédito dos bancos permanecerão rigorosas. Segundo Carbonari, também presidente do Banco Volkswagen, apenas 15% das propostas de financiamento para o prazo de 60 meses foram aprovadas, enquanto um ano atrás esse percentual era o dobro (30%). “Por enquanto, [a política de crédito] segue como está. Se a inadimplência diminuir poderemos financiar mais em 60 vezes”, diz Carbonari.

Quem trabalha no varejo percebe que o poder de compra do consumidor ficou comprometido com financiamentos e crediários tomados em 2011 e inicio de 2012. “A facilidade na aprovação de financiamentos e o incentivo ao consumo passou a ideia de que o Brasil passaria incólume pela a crise”, afirma Paulo Pacito.

A psicanalista Vera Rita de Mello Ferreira, especialista em psicologia econômica, lembra que, por falta de experiência, muitos consumidores que compram “para satisfazer o desejo imediato” desconhecem o peso das taxas de cartão de crédito e cheque especial. “Nosso cérebro tende a lidar melhor com o curto prazo. Os milhares de anos em que prevaleceu a cultura da sobrevivência deixaram marcas profundas”, destaca.

Para ela, o consumidor brasileiro terá de aprender a poupar, uma prática que ganha importância diante do aumento da expectativa de vida. Para a psicanalista, também favorece o consumo exacerbado “o fato de o brasileiro estar em lua de mel com o país que está acontecendo”. O resultado é um acúmulo de despesas que antes não faziam parte do orçamento doméstico.

Talvez seja por isso que os clientes que hoje passam pelas lojas de veículos estejam mais interessados em se desfazer de uma dívida do que em comprar. O professor e auxiliar de enfermagem Eduardo Morais Pereira vai aproveitar esse fim de semana para continuar procurando uma loja que aceite comprar o seu veículo em troca de um mais velho, mais barato.

No ano passado, Eduardo comprou um Audi A3 seminovo em 36 meses. Pagou só sete prestações. Faltam, portanto, mais 29 parcelas de R$ 1,3 mil. A dívida que ele acumula hoje – R$ 38,5 mil – é maior do que vale o carro (R$ 30 mil). Esse não é o primeiro financiamento de carro que ele faz. “Mas antes era muito mais fácil fazer a troca de um carro alienado; não sei porque tudo agora ficou mais difícil”, diz.