Denúncias na Fábrica

Revista Exame – 30/04/2012

Tapas, gritos, jornadas extenuantes. Nunca houve tantas acusações trabalhistas contra empresas asiáticas no Brasil e a onda de investimentos da Ásia no país apenas começou

Thiago Bronzatto

Às 13 horas e 25 minutos do dia 10 de maio de 2011, foi ouvida a testemunha (…) Graziele Botelho Silva, (…) metalúrgica, (_) que trabalhou paraa Samsung (. .) até sua demissão em 4 de janeiro de 201L (,..) Via pessoas passarem chorando, além de ouvir gritos por parte de superiores, inclusive de origem coreana. Tinha um coreano chamado Kim que ficava o tempo todo atrás das trabalhadoras (…) falando PALÓ PALÓ PALÓ (sic), o que significa rápido, rápido, rápido em coreano. Além dessa ordem, levavam tapas nas costas como forma de atender (aumentar) a produção.

O depoimento acima, concedido à Procuradoria Geral do Trabalho da15ª Região, em Campinas, no interior de São Paulo, foi obtido com exclusividade por EXAME.

Graziele, de 30 anos, está processando a Samsung por assédio moral. Seu relato descreve um ambiente opressivo, em que o cumprimento de metas é colocado acima de qualquer regra de convivência – ou mesmo da lei brasileira. Segtmdo Graziele, os berros e os tapas eram as ar mas de seus chefes para atingir os objetivos de produção traçados pela matriz. Poderia ser apenas um dos milhares de acusações que chegam todo ano à Justiça do Trabalho – mas o depoimento de Graziele repete um pa4rão que vem despertando a atenção das autoridades brasileiras: como ela, uma centena de funcionários de empresas asiáticas, como as coreanas LG, Samsung e Hyundai, a taiwanesa Foxconn e a japonesa Toyota, procurou o Ministério Público do Trabalho (MPT) para relatar maus-tratos e assédio moral em suas linhas de produção instaladas no Brasil. “Nunca houve tantas denúncias contra empresas asiáticas”, diz Catarina von Zuben, procuradora do MPT responsável por fiscalizar cerca de 600 municípios no interior de São Paulo, região onde está localizada a maior parte dessas companhias. “Algumas delas têm ignorado solenemente a legislação trabalhista brasileira.

Nas últimas semanas, EXAME teve acesso a mais de 300 páginas de depoimentos de funcionários dessas empresas e entrevistou 15 deles. As acusações vão desde empregados que teriam apanhado durante o expediente porque conversavam na linha de montagem até jovens que apresentariam desgastes ósseos típicos da terceira idade devido a jornadas extenuantes. Não é possível saber o que há de verdade e o que há de exagero nas acusações, algo que cabe à Justiça determinar. As empresas se defendem das acusações.

Até agora o caso mais notório envolveu a unidade da Samsung em Campinas – a mesma onde trabalhava Graziele. Em 2010, após receber uma série de denúncias de agressões físicas e verbais, o MPT ouviu cerca de 40 funcionários da empresa para checar a veracidade das acusações. Em seguida, determinou que o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, órgão ligado ao Ministério da Saúde, examinasse os denunciantes. O laudo médico revelou que mais da metade deles apresentava algum tipo de distúrbio mental ou problemas ósseos e musculares em razão do excesso de trabalho.

No inquérito, consta uma série de depoimentos de pessoas que afirmaram ter sido agredidas e obrigadas a trabalhar 15 horas por dia para cumprir as metas de produção. Segundo o depoimento da funcionária Vanessa Correia da Silva, os chefes da fábrica afirmavam que quem não quisesse trabalhar as 15 horas poderia ser demitido porque “havia muita gente desempregada querendo seus lugares”. “Todo mundo tinha medo do “Mr. Park”, o responsável pela fábrica”, diz Walter Manoel, operador de produção da Samsung em Campinas. “Ele xingava as pessoas de inúteis quando alguma coisa dava errado.” (Manoel é membro do sindicato e tem estabilidade de emprego, por isso fala abertamente sobre o assunto).

Para encerrar a investigação, em setembro do ano passado a Samsung assinou um acordo com o MPT para pagar uma multa de 500.000 reais, destinados a entidades assistenciais. Além disso, comprometeu-se a cumprir a legislação trabalhista brasileira. Oficialmente, a Samsung reconhece que houve problemas na fábrica e afirma que vem adotando medidas para melhorar seu relacionamento com os empregados. Além de afastar, no fim do ano passado, o funcionário responsável pela fábrica, Byung Eun Park, a empresa criou o programa One Samsung na tentativa de desenhar uma cultura única no Brasil. “Temos um comitê que avalia denúncias de assédio moral”, diz o presidente da Samsung no Brasil, Jeong Wook Kim.

Dos casos descritos a EXAME, os que mais chamam a atenção são aqueles em que a acusação sai do insulto e da pressão para a agressão pura e simples (eles são, é bem verdade, a minoria). A metalúrgica Simone Cristiane Rosa, que trabalhava no departamento de monitores na fábrica da LG em Taubaté, no interior de São Paulo, alega ter sido agredida com um tapa pelo chefe coreano porque conversava durante o trabalho. “O pessoal do departamento de recursos humanos me trancou em uma sala de reuniões e disse que eu só sairia dali quando assinasse um contrato dizendo que não havia sido agredida” afirma Simone, que diz ter se recusado a assinar o tal contrato. “Tive de me tratar com um psiquiatra. Toda vez que passava em frente à LG, começava a chorar”.

Uma funcionária ouvida por EXAME (e que pediu para não ser identificada por ainda trabalhar na LG, em São Paulo) diz que seu chefe coreano lançou uma caneta em sua cara quando descumpriu um prazo. A empresa recorre da decisão judicial que a condenou a pagar uma multa de 450.000 reais ao Fundo de Amparo ao Trabalhador e 50.000 reais a Simone em razão de suas denúncias. A LG afirma ainda que segue o conceito de suas iniciais (“Life is good”, ou “A vida é boa”) e, por isso, valoriza o bem-estar de seus funcionários.
NOVA INVESTIGAÇÃO

O histórico de denúncias fez com que o Ministério Público do Trabalho da região de Campinas decidisse investigar até mesmo uma empresa coreana que acabou de chegar ao Brasil, a montadora Hyundai. Nem bem começou a produzir seu novo compacto no país, a empresa tornou-se alvo de investigação. Segundo EXAME apurou, desde janeiro os promotores receberam denúncias de cerca de dez pessoas reclamando de berros de superiores na fábrica em Piracicaba, no interior de São Paulo, chamando-as de ignorantes e incapazes de realizar tarefas básicas. Além disso, elas se dizem obrigadas a desempenhar mais de uma tarefa na linha, o que é proibido.

Procurada, a Hyundai confirma ter sido notificada pelo Ministério Público, diz que está colaborando com a investigação e que aguarda uma definição do caso para se pronunciar.

Se o que acontece no interior de São Paulo hoje é um caso de choque cultural, o debate tende a se acentuar daqui em diante. O investimento direto anual de Japão, China e Coreia do Sul no Brasil aumentou 5 400% de 2006 para cá. Somou 11 bilhões de dólares no ano passado e já representa 16% do total de dinheiro estrangeiro injetado no país (veja quadro). Nesse período, 110 companhias orientais se instalaram por aqui, como é o caso de Hyundai e Foxconn. Até o início do ano que vem, outras 60 devem inaugurar um escritório ou uma fábrica no país – só a Foxconn, famosa por produzir iPhones e iPads para a Apple, pretende abrir outras cinco linhas de produção no Brasil. Além de crescerem em número. as subsidiárias brasileiras dessas companhias vêm ganhando importância no faturamento global. No ano passado, o Brasil se tornou o segundo maior mercado da LG no mundo (atrás dos Estados Unidos e à frente da própria Coreia). No caso da Samsung, o Brasil ocupa a quinta posição entre os 68 países em que a empresa está presente.

A rotina de trabalho em empresas asiáticas se tornou uma fonte de polêmica mundial – um debate motivado, sobretudo, pela crescente importância da China como base de produção para empresas ocidentais. A cada relato de maus-tratos ou suicídios nas fábricas, o tema volta à tona.

Em janeiro deste ano, cerca de 300 funcionários da Foxconn na província de Wuhan, no interior da China, ameaçaram se suicidar em protesto contra o excesso de sujeira nos alojamentos, a falta de treinamento para operar as máquinas e o parcelamento de salários que, em tese, deveriam ser pagos à vista. O escândalo tomou proporções mundiais e fez com que a Apple, maior cliente da Foxconn, interviesse. A empresa contratou a entidade americana Fair Labour Association (Associação do Trabalho Justo, numa tradução livre) para inspecionar a saúde, a segurança, os salários, a jornada de trabalho e a moradia dos trabalhadores da Foxconn na China. Para aliviar a pressão criada pela Apple, a Foxconn anunciou em fevereiro um reajuste salarial de 16% a 25% para seus funcionários.

Em escala muito menor, a empresa também vem enfrentando problemas em suas linhas de produção no Brasil. Um executivo da companhia no país que pediu para não ter seu nome revelado disse que não é raro receber ligações durante a madrugada, nas quais o chefe do outro lado do mundo cobra, aos gritos, a solução de algum problema que tenha atrapalhado o ritmo de produção.

Em fevereiro deste ano, um grupo de funcionários brasileiros da Foxconn se reuniu em frente à fábrica de Indaiatuba, no interior de São Paulo, vestindo fantasias de animais para protestar contra os supostos maus tratos. O movimento foi desencadeado por uma declaração do presidente mundial da empresa, o taiwanês Terry Gou, para quem “gerenciar 1 milhão de animais dava dores de cabeça”. Procurada, a Foxconn, que tem 1 milhão de funcionários no mundo, preferiu não se manifestar. Gou, que anunciou a intenção de abrir mais fábricas no Brasil, disse em fevereiro que os brasileiros “não gostam de trabalhar”.

HIERARQUIA Embora seja simplista – é errado pressupor a existência de uma “cultura asiática” homogênea, os especialistas apontam traços comuns que ajudam a explicar a origem dos choques culturais que envolvem essas empresas. “De maneira geral, os asiáticos têm uma cultura extremamente voltada para o trabalho”, diz Yi Shin Tang, professor de relacões internacionais da Universidade de São Paulo. “E eles esperam encontrar esse mesmo grau de comprometimento em outros países. Os choques são inevitáveis.”

Uma pesquisa realizada pela Universidade de Nottingham, na Inglaterra, entre 2009 e 2010, com 570 trabalhadores coreanos e britânicos, dá uma ideia dessa diferença de cultura. Para os coreanos, o bullying praticado no ambiente de trabalho era considerado aceitável, desde que aumentasse a eficiência da equipe. Entre os britânicos, a prática foi tida como inadmissível, não importando se a pressão melhora ou piora os resultados. “Os coreanos chegaram a afirmar que as vítimas de assédio eram as reais culpadas, porque não tinham o desempenho desejado por seus chefes”, diz Yoojeong Nadine Seo, pesquisador coreano responsável pelo estudo. No livro Fora de Série, o jornalista nova-iorquino Malcolm Gladwell usa um desastre para exemplificar o valor que os coreanos dão à hierarquia. No capítulo Teoria Étnica dos Acidentes de Avião, ele teoriza que a colisão de um avião da Korean Airlines em 1997 com uma montanha poderia ter sido evitada se a equipe tivesse avisado o comandante dos erros que estava cometendo. Não o fizeram, afirma Gladwell, por um respeito irracional à hierarquia. O acidente deixou 228 mortos.

ASSÉDIO TAMBÉM É COISA NOSSA

Apesar de causarem espanto, insultos, agressões físicas e uma rotina extenuante de trabalho são mais comuns nos dias de hoje do que se imagina. A constante pressão por resultados tem feito com que executivos extrapolem os limites das boas práticas de gestão. Só no interior de São Paulo, na mesma região onde estão instaladas as companhias asiáticas que são alvo de investigação, foram denunciados 242 casos de assédio moral no ano passado em empresas não asiáticas, um recorde histórico. Claro, há acusações no país inteiro. A fabricante de bebidas Ambev, por exemplo, foi condenada em fevereiro do ano passado a pagar uma indenização de 25.000 reais a um ex-vendedor potiguar. Segundo o processo, ele foi obrigado por seu superior a se deitar em um caixão para ter a sensação de ser um “profissional morto”, já que não havia batido as metas. Procurada, a Ambev diz que os problemas são pontuais e não refletem o dia a dia da empresa.

O exemplo da Ambev, com sua notória obsessão por crescimento e lucros, dá bem a medida de como o choque de culturas é algo até esperado quando grandes empresas abrem unidades ou fazem aquisições em outros países. Logo após a Inbev (empresa resultante da fusão da Ambey com a belga Interbrew) assumir o controle da cervejaria americana Anheuser-Busch em novembro de 2008, os executivos brasileiros iniciaram um drástico corte de custos na operação americana. Além disso, criaram uma lista com o nome dos executivos que mais gastavam e o dos que não batiam as metas, numa espécie de ranking às avessas.

Nos Estados Unidos, pegou muito mal – mas até que ponto se pode dizer o que é certo e o que é errado nesse caso? A Anheuser-Busch estava parada no tempo, carcomida após anos de escalada em seus custos. O mesmo havia acontecido na Bélgica após a fusão com a Interbrew. O certo é que os brasileiros que mandam na Inbev têm um jeito de ver as coisas, e seus subordinados americanos, outra. Na França, três funcionários da Renault se suicidaram entre 2006 e 2007 – deixaram cartas em que se diziam incapazes de executar o plano de crescimento desenhado pelo executivo Carlos Ghosn, presidente da Renault-Nissan. De novo, é impossível medir a relacão entre uma coisa e outra. O benefício da dúvida, que vale para Renault e Ambev, não deveria valer também para empresas asiáticas?

Só a Justiça poderá responder.

Até agora, no entanto, há sinais concretos de que as empresas asiáticas começam a se preocupar com o embate cultural que vem se desenhando no Brasil. No início de abril, a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Coreia enviou a acadêmicos e executivos um questionário para avaliar a atuação dessas empresas no Brasil. No questionário, constavam perguntas sobre as relações de trabalho nas companhias.um exemplo: “O Brasil possui uma legislação trabalhista rígida e com normas diferentes da coreana. Estas influenciam jornada de trabalho, formas de tratamento, remuneração, entre outros. (…) As metas impostas pela matriz coreana a esta filial levam em consideração estas restrições?” A ideia é que as respostas sirvam de guia para as empresas coreanas no Brasil. Os representantes das companhias parecem ter concordado que aqui é de um jeito, na Coreia é de outro. E meio caminho andado para que haja um choque cultural.É também meio caminho andado para que as coisas melhorem daqui em diante.

Os maus-tratos são considerados aceitáveis pelos executivos coreanos desde que aumentem a eficiência da equipe, diz um estudo britânico.

O assédio moral não é um problema exclusivo das empresas asiáticas. Em 2OR a Ambev foi condenada por colocar um vendedor em um caixão.