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Deve ser aprovado o projeto de lei que proíbe punição física a crianças?

TENDÊNCIAS/DEBATES – FOLHA SP

SIM

Não há castigo corporal tolerável

PETER NEWELL e PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Congresso Nacional projeto de lei alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para proibir toda forma de punição violenta dos 69 milhões de crianças brasileiras.
Como bem demonstrou a pesquisa do Datafolha, 72% dos brasileiros sofreram sistematicamente com castigo físico quando crianças.
Nos 50 países que visitamos quando preparamos para a ONU o Relatório Mundial sobre Violência contra a Criança (2007), as crianças foram eloquentes em nos dizer que estão cansadas de serem submetidas à violência diária, rotineira, experimentadas em seus lares pelas mãos de seus pais e nas escolas por seus professores: o castigo corporal é universal.
Todos os países, inclusive o Brasil, têm leis penais que protegem as pessoas adultas de serem alvo de agressão. Mas, quando se trata de crianças, a lei autoriza os adultos a agredi-las, à guisa de “disciplina”.
O Datafolha revelou que 58% dos pais já bateram no filhos e que 54% são contra a lei, deixando entrever que, toda vez que os adultos são confrontados com essa questão, se sentem ameaçados em criticar seus próprios pais pelos castigos físicos ou tomam a proteção dos direitos da criança como um ataque contra o pátrio poder.
Deve ficar claro, no entanto, que não se trata de retirar a autoridade dos pais e da família nem de criminalizar pais, mas de promover formas positivas, não violentas de disciplina, muito mais eficazes que dar palmadas a torto e a direito.
Hoje, não há nenhuma dúvida de que os castigos físicos são uma violação dos direitos da criança e de que o Estado tem o dever de protegê-la, pois os direitos humanos não param na soleira das casas.
Em 2006, o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança interpretou a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança -ratificada pelo Brasil e por 191 países- emitindo um comentário geral formal sobre o direito da criança à proteção contra o castigo corporal, enfatizando que “eliminar a punição violenta e humilhante das crianças, por meio da reforma das leis e de outras medidas necessárias, é uma obrigação imediata e incondicional”” de todos aqueles países.
O Comitê deixa claro que não se pode medir a gravidade da palmada nem se definir uma forma “tolerável” de castigo corporal de crianças, da mesma forma que não se tenta definir se a violência é “aceitável” ou “razoável” no caso de violência contra outros adultos, mulheres ou pessoas idosas.
No ano passado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em um relatório, confirmou a obrigação de todos os países do continente de proibir imediatamente todas as formas de castigos corporais -estabelecendo como meta para o cumprimento o final do ano de 2011.
A lei, quando aprovada, fará do Brasil o 27º país no mundo a conseguir a proibição completa dos castigos corporais, inclusive no âmbito familiar. Na América Latina, Costa Rica, Uruguai e Venezuela já têm proibição completa de todas as formas de castigos corporais.
Na Europa, o Conselho Europeu lançou campanha em 2008 para a proibição universal de todos os castigos corporais em seus 47 Estados (em 22 deles já são proibidos).
As crianças são o último grupo no Brasil a que falta alcançar igual proteção contra agressões.
Quando o Congresso aprovar o projeto de lei protegendo os 69 milhões de crianças brasileiras da violência, dará um marco notável na campanha global para libertar as crianças de punições violentas e humilhantes.

PETER NEWELL é coordenador da Iniciativa Global para o Fim de Todo Castigo Corporal das Crianças, sediada em Londres. Site: www.endcorporalpunishment.org.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO é comissionado e relator da criança da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.

NÃO

Lei não soluciona os problemas da infância

LINO DE MACEDO
Penso, como a maioria da população brasileira, a julgar pela pesquisa divulgada nesta Folha, que é desnecessária uma nova lei detalhando leis vigentes, que já funcionam. O que necessitamos, sim, é de uma lei de tomada de consciência deste importante problema.
Crianças e jovens precisam ser bem cuidadas e consideradas na complexidade de problemas e necessidades. Muitos pais, hoje, se sentem confusos e desqualificados para exercer este papel simbólico e material tão importante em nossa cultura. Por que confundi-los mais ainda detalhando uma lei que já funciona?
O que se observa, hoje, é uma crise de autoridade das instituições que têm funções disciplinares e educacionais (a família e a escola, sobretudo).
O sentimento de muitos pais é o de que suas alternativas educacionais são insuficientes. Não se permitem mais, por abusivos, os “recursos pedagógicos” de seus pais ou avós, mas não sabem o que fazer no lugar.
Bater em uma criança, na maior parte dos casos, é covardia de um adulto, pois se trata de recorrer a uma desigualdade, a uma relação de força para impor uma ordem; trata-se, pois, de um abuso de poder, de perda de razão.
Não por acaso, os adultos que batem nas crianças o fazem quando estão dominados por emoções negativas que não conseguem controlar. Desabafam, mas não educam. É certo que pais não podem bater em seus filhos.
Este sempre foi e será o pior dos “argumentos”, pois é um argumento da força e da violência. Mas há outros “argumentos”, não previstos na lei, que são igualmente negativos para a educação das crianças, como a sedução e o assédio.
Com a lei, até parece que os pais antes tinham autorização para bater e agora perderam-na. Por que transferir para um Estado, nem sempre cioso no cumprimento de seus deveres, obrigações que são da família?
O âmbito da casa, do lar, é responsabilidade dos pais ou dos adultos responsáveis. Uma lei dá por “resolvido” um problema, pois, ao proibir em geral um tipo de comportamento realmente negativo, supõe dar conta de evitar suas ocorrências particulares.
A lei nega uma vil possibilidade, no que faz muito bem. Mas o que ela oferece em troca? Em nome do “amor” e do “cuidado” por um filho, um pai não pode bater. É certo.
Mas também não pode seduzir, comportar-se de modo ambivalente, permissivo, indiferente.
É comum hoje crianças agirem como “tiranos” que controlam, fazem exigências e submetem os adultos aos seus interesses e vaidades. Isso é bom?
Por que não fazer também uma lei proibindo a “compra” do amor ou da submissão com presentes, promessas, seduções e ameaças afetivas de muitos tipos (não mais gostar, estar decepcionado etc.)?
Não podemos, na prática, legalizar o amor, o ódio, a raiva e o ressentimento que as crianças muitas vezes nos causam. Mas podemos nos educar para expressá-los de um modo que seja adequado e benéfico ao desenvolvimento delas.
Educar é a melhor forma de proteger. Muitas vezes, as crianças precisam ser contidas fisicamente. Elas estão fazendo coisas que não são boas para elas nem para ninguém. Como essa continência, a partir da nova lei, será interpretada? Como não substituir a violência física pela violência verbal (xingamentos, ofensas, ameaças de todo tipo)? Como não substituir a violência física pela permissividade, indiferença, fraqueza, omissão?
Como não substituir a violência física pela sedução, por promessas que criam ilusões, que confundem? Penso que, hoje, os problemas da sedução, assédio, indiferença, permissividade e omissão dos adultos em relação às crianças e jovens são tão graves ou mais do que o das palmadas.

LINO DE MACEDO é professor titular de psicologia do desenvolvimento do Instituto de Psicologia da USP e membro da Academia Paulista de Psicologia.