Há quarenta anos, em meio à crise econômica, desgaste político e pressão popular, a ditadura militar começava a ruir. Defender a democracia, entretanto, é uma história em constante construção. Como diria Gal Costa, “é preciso estar atento e forte.”
A década de 1980 no Brasil começou sob o impacto da onda de greves, da Anistia e das mobilizações contra a carestia. Para os trabalhadores, a 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat) e a Greve Geral de 21 de julho de 1983 foram eventos que provocaram maior engajamento político.
Em Brasília, a ditadura vivia a derrota relativa das eleições de 1982, com manutenção da maioria nos governos estaduais e no Senado, mas não na câmara dos deputados, onde a oposição conseguiu mais representantes.
Era uma configuração que tornava mais palpável o sonho da volta da democracia, e que encorajou a oposição a coletar assinaturas para o projeto de emenda constitucional do deputado Dante de Oliveira que estabelecia eleições diretas. No dia 2 de março de 1983 já havia assinaturas suficientes para ser apresentada no Congresso.
A expectativa em torno da votação da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira pelo Congresso instigou o povo brasileiro, levando multidões às ruas em um movimento sintetizado pelo senador alagoano Teotônio Vilela (no programa Canal Livre da Rede Bandeirantes) como: “Diretas Já!”.
Os metalúrgicos de São Paulo, que na Greve Geral de 21 de julho demonstrou poder de mobilização, unidade e influência ao fazer com que mais de 90% dos metalúrgicos da Capital aderisse, participou ativamente do movimento pelas Diretas.
Aquele ano de 1983 foi marcante para o Sindicato. Uma passagem do livro “Metalúrgicos de São Paulo – Documentos – 1979 – 1983” revela o espírito dos dirigentes metalúrgicos à época:
“1983 tem sido um ano de muitas lutas. Soubemos combinar de maneira inteligente e criativa nossa proposta contra a recessão, o desemprego e o arrocho com iniciativas de resistência, de organização e qualificação dos ativistas, realizando dezenas de greves localizadas contra o facão e participando das grandes lutas contra a política econômica, pela democracia e participação dos trabalhadores. Os eventos realizados, desde a Conclat, na Praia Grande, até o VI Congresso dos Metalúrgicos da Capital, foram momentos importantes com nossa participação. (…) Nossa ação sindical, expressão de uma vontade de luta e de mudança, contrariou os prognósticos mecânicos e pessimistas daqueles acomodados que condenavam o movimento sindical a um refluxo inapelável decorrente da crise”.
A entidade passava por um processo de renovação e fortalecimento e reafirmava sua amplitude e capacidade de diálogo com todas as forças democráticas que defendessem os interesses dos trabalhadores.
E o movimento pelas Diretas Já! também estava na agenda do Sindicato. No Congresso da categoria de 1983, ao lado de bandeiras avançadas que atinavam para um país mais livre e mais evoluído, estava a pauta das eleições diretas. Pauta que seria levada para as fábricas através de atos, panfletos, jornais e até da produção de camisetas, para os trabalhadores usarem nos comícios, personalizadas com a marca dos metalúrgicos casada com a marca das Diretas Já!.
Segundo Vital Nolasco, ex-diretor do Sindicato, em depoimento ao Centro de Memória Sindical de abril de 1989, o Sindicato participou de forma organizada de todo aquele processo: “Nem houve muita discussão. Vamos participar, peitar e acabou. Naquele momento o Joaquim [dos Santos Andrade] também sentia necessidade de se reciclar, de aparecer para a opinião pública como um cidadão avançado e progressista”.
De fato, em seu depoimento ao Centro de Memória Sindical de maio de 1991, Joaquinzão, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, confirma que cultivava ideias progressistas quando diz que “o país necessitava de um novo modelo econômico” por causa do “empobrecimento gradativo da classe trabalhadora”. Para ele, “tudo isso estava ligado ao desejo de eleições diretas”: a liberdade de organização partidária, a luta pela anistia política e o levante sindical de 1978 e 79.
“O Brasil começava a ser apertado pelo endividamento externo e nós sentíamos que a partir daí ia piorar (…) Daí a razão de termos aberto o leque para as eleições diretas, porque entendíamos que os militares, aguilhoados pela rudeza da nossa situação econômica, poderiam amenizar e deixar a administração do país para um brasileiro que fosse eleito democraticamente pela sociedade. Embora naquela altura dos acontecimentos não acreditássemos ainda numa democratização total e em curto prazo, era uma luta que tinha que ser iniciada e quando ainda pouca gente falava em eleição direta, nós fomos os primeiros a falar sobre isso”, disse o dirigente.
Ele ainda arrematou lembrando que: “trabalhadores tinham sido punidos com tratamento selvagem, como enfiar agulhas nas unhas e coisas extremamente dolorosas. Nós sabíamos. Isso que vinha ao nosso conhecimento era praticado, o que aumentava a nossa obrigação e a nossa sede de democratizar o país para acabar com essa violência e tortura que havia por toda a parte no Brasil”.
Encerrar a ditadura era, para o país, superar um período obscuro, marcado por segredos de Estado sujos, revelados muitos anos depois, como a extensiva prática de repressão e torturas, denunciadas por Joaquim. Era também combater uma política econômica que privilegiava os patrões em detrimento dos trabalhadores.
Encerrar esse período, que em 1984 completava vinte anos, era o anseio dos brasileiros que lotavam os comícios pelas Diretas. Comícios que chegaram a contar com mais de um milhão de pessoas em São Paulo e no Rio de Janeiro, que contavam com a presença de sindicalistas, artistas, intelectuais, esportistas, religiosas e demais democratas, como Joaquinzão, Jair Meneguelli, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Dante de Oliveira, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Chico Buarque, Sócrates, entre outros.
O presidente João Figueiredo ainda tentou reprimir os protestos, reforçando a censura sobre a imprensa e usando violência policial. Mas seu autoritarismo foi atropelado pela massa que saia às ruas.
O movimento pelas Diretas Já! teve grande influência nas transformações vividas pelo país naquele momento, mas o principal objetivo, as eleições diretas, não foi conquistado, e o povo só iria às urnas para eleger um novo presidente em 1989. Isso porque a mudança deveria passar pelo Congresso Nacional que, através de manobras dos militares, derrubou a Emenda Dante de Oliveira na noite de 25 de abril de 1984.
A ditadura, entretanto, quando a oposição se dedicou a buscar assinaturas para a emenda Dante de Oliveira, em março de 1983, já estava praticamente morta.
Nos 40 anos que nos separam daquela data a democracia brasileira amadureceu. Mas, como nem tudo são flores, as crises econômicas das décadas de 1980 e 1990, a crise de 2008, e a própria natureza do acordo que restitui o Estado Democrático de Direito, produziram grandes desafios que trouxeram de volta a ameaça daquele período obscuro. Embora derrotada, a ditadura deixou feridas abertas na sociedade.
Com Temer e Bolsonaro essas feridas ficaram expostas, deixando o Brasil em alerta. O movimento sindical, por exemplo, mesmo livre de intervenções e da perseguição militar, sofreu um golpe em 2017 que remete às práticas repressivas da ditadura.
Nessas idas e vindas da história, os retrocessos dos anos Temer e Bolsonaro, levaram a sociedade civil organizada a reagir, e o ato do dia 11 de agosto de 2022 na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), foi simbólico em tal reação. Mais uma vez os metalúrgicos estiveram lá, e o presidente da entidade, Miguel Torres, conforme informa o site do Sindicato: “transformou o Salão Nobre em uma assembleia, pedindo que todos ficassem em pé, dessem as mãos e depois levantassem as mãos e com os punhos fechados gritassem “sociedade unida jamais será vencida”. Em seu discurso ele resgatou o espírito de luta e de urgência das Diretas Já de 1983 e 1984. Um espírito que foi necessário para que mais uma vez um governo autoritário fosse derrotado e a democracia preservada.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical