Especialistas acreditam que músicas banalizam violência contra a mulher

Para diretora do Instituto Patrícia Galvão, artistas devem ter responsabilidade com conteúdo das canções

“Se ele te bate/ É porque gosta de ti/ Pois bater-se em quem/ Não se gosta/ Eu nunca vi”. A canção “Amor de malandro”, gravada por Francisco Alves em 1929, deixa evidente: bater em mulher era tão trivial algumas décadas atrás que, sem cerimônia alguma, virava letra de samba. Mais de 80 anos depois da canção e nove anos depois da aprovação da Lei Maria da Penha, que protege a mulher contra a violência doméstica, o Brasil ainda mostra resquícios da herança misógina.

O levantamento “Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, lançado semana passada pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), mostrou que 4.762 mulheres foram assassinadas no país em 2013, índice 12,5% maior do que em 2006.

A taxa de homicídios de mulheres — a quinta maior do mundo — foi revelada na mesma semana em que o secretário de Governo do Rio, Pedro Paulo Carvalho, pré-candidato do PMDB à prefeitura em 2016, foi acusado de agredir a ex-mulher, Alexandra Marcondes Teixeira, pelo menos duas vezes. “Quem não tem um momento de descontrole?”, argumentou Pedro Paulo em entrevista coletiva. Especialistas acreditam que as músicas não são apenas um retrato de uma sociedade que naturaliza a violência doméstica, mas também têm um papel ativo em estimular, em certa medida, o feminicídio. O machismo está tão presente na cultura popular que, muitas vezes, dificulta que a própria mulher perceba que é vítima de relacionamentos abusivos.

LINHA DO TEMPO: O MACHISMO ATRAVÉS DA MÚSICA BRASILEIRA

— Quando se coloca na letra de uma música popular um comportamento violento, sem uma reflexão por trás, é uma forma de banalizar a opressão. De certa forma, isso estimula as agressões — comenta Marisa Sanematsu, diretora de conteúdos do Instituto Patrícia Galvão, que zela pelos direitos das brasileiras. — Quando você diz numa canção “Se te pego com outro, te mato”, isso passa a ser esperado socialmente.

De “Dá nela!”, de 1930, a “Lôraburra”, de 1993, passando pelo clássico “Amélia”, os exemplos de músicas que criam estereótipos femininos são muitos. A historiadora Carla Bassanezi Pinsky, autora do livro “Mulheres dos Anos Dourados” e especialista na pesquisa de revistas femininas dos anos 1940, 1950 e 1960, ressalta que a produção cultural do país é o maior reflexo da disseminação dessa cultura hegemônica.

— As revistas são verdadeiros documentos da época e mostram claramente que as tarefas no lar eram obrigação das mulheres e que trabalhar fora de casa não era bem visto entre a classe média. Ditados populares como “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” e outros que afirmam que a esposa que sai dos eixos merece “corretivo” perpassam essa sociedade. Dar uma surra na mulher porque ela fala demais, por exemplo, era motivo de risada — comenta Carla. — As revistas e músicas reforçam e divulgam os valores.

Uma guinada aconteceu na segunda metade da década de 1960, com a chegada do anticoncepcional e uma maior participação das mulheres no mercado de trabalho. O cinema americano deu um empurrão, ao mostrar mocinhas ousadas que beijam rapazes no primeiro encontro e dançam rock n’roll. Na MPB, o cenário muda a partir dos anos 1970, segundo o pesquisador musical Rodrigo Faour, quando autores como Chico Buarque, Gonzaguinha e Ivan Lins, e compositoras como Vanusa e Rita Lee, começaram a defender os direitos das mulheres em suas letras. Hoje, o funk carioca puxa a revolução feminina, com Valesca e Tati Quebra Barraco cantando sobre sexo e o poder das mulheres.

— A mulher poder dizer o que quer e expressar as angústias femininas nas letras foi uma conquista dos últimos 40 anos. Vanusa foi precursora, ao ser uma das primeiras cantoras e compositoras a falar abertamente sobre a violência doméstica, em “S.O.S. mulher”, de 1981. É muito interessante que artistas abracem essa causa, como também fizeram Alcione e Elza Soares — analisa o especialista, sem esquecer das funkeiras. — Elas quebraram o mito que mulher tem menos desejo sexual que o homem.

No álbum de inéditas “A mulher do fim do mundo”, lançado mês passado, Elza Soares fez questão de incluir uma música que é um alerta contra a violência doméstica. “Eu vou ligar pro um oito zero / Vou entregar teu nome”, avisa a cantora na letra, divulgando o telefone da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.

— Acho essencial defender as mulheres agredidas, que não conseguem pedir socorro. Senti necessidade de abraçar a causa — afirma Elza, orgulhosa da faixa “Maria da Vila Matilde”. — Mulher tem que gritar mesmo, tem que reivindicar, fazer escândalo. Gemer, só de prazer.

Letras de gosto duvidoso não pararam de ser produzidas na década de 1960. A canção “Trepadeira”, de Emicida, lançada dois anos atrás, causou ira entre as feministas com os versos: “Dei todo amor, tratei como flor / Mas no fim era uma trepadeira”. A letra de “Agora viu que perdeu e chora” — “Mulher foi feita para o tanque / Homem para o botequim” —, sucesso de Arlindo Cruz em 2012, e um sem-número de hits do sertanejo universitário sobre mulheres interesseiras são apenas alguns exemplos.

TEMA ATUAL

Marisa Sanematsu, do Instituto Patrícia Galvão comemora, no entanto, as pequenas vitórias, como a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), anunciada em outubro passado, que concluiu que as músicas “Tapinha” e “Tapa na cara” incitam a violência contra a mulher. O tribunal condenou, em segunda instância, a produtora e a gravadora a pagarem multa de R$ 500 mil, a ser revertida para o Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos. A ação tramitava na Justiça desde 2003.

— A patrulha e a pressão pública hoje são maiores. Vejo com otimismo jovens mulheres e rapazes prestando mais atenção às manifestações de discriminação e criticando esse tipo de apologia nas redes sociais. Se a gente não reclama, a coisa banaliza. Tem que reclamar mesmo, e fazer o artista se posicionar — cobra Marisa. — Dizer que a música popular sempre foi assim não é desculpa. Naquela época, não tinha Lei Maria da Penha, não tinha conscientização sobre a questão. Hoje tem.

Para combater as estatísticas alarmantes de ataques ao sexo feminino, a Rede Globo e a ONU Mulheres, liderança global na defesa dos direitos humanos, lançaram, esta semana, na TV, uma campanha de enfrentamento à violência de gênero, mostrando a importância da denúncia das agressões pelo telefone 180.