Colapso de prédio com confecções em Bangladesh expõe o amplo uso da mão de obra barata, apesar da falta de segurança e da miséria dos operários
No mundo da moda, campanhas de publicidade apresentam jovens conscientes das dimensões sociais do mundo, do desafio ecológico e mesmo do respeito à diversidade. Mas suas cadeias de produção escondem um submundo corroído pela exploração da mão de obra barata e por condições deterioradas de fábricas. Agora, essa situação começa a ganhar contornos políticos – e até religiosos – que ameaçam governos.
O colapso de um edifício em Bangladesh no final de abril, deixando mais de 1,2 mil mortos e mais de 2 mil feridos (mais informações nesta página), abriu as feridas do setor têxtil e da moda, que nos últimos anos embarcou na busca por fornecedores de baixo custo para poder colocar no mercado camisas, calças e centenas de outros artigos a preços baixos.
Temendo prejuízos globais diante das tragédias, empresas de todo o mundo se apressaram na semana passada a assinar acordos com sindicatos se comprometendo em garantir a segurança de seus funcionários. Especialistas disseram ao Estado que a atitude tem muito mais a ver com salvar a imagem do setor que com os trabalhadores, que há anos alertam sobre as más condições nas fábricas.
Já outros alertam que a ação pode ter sido tardia. Em Bangladesh, protestos se proliferam e grupos islamistas já usam o acidente para mobilizar um movimento para depor o governo.
O país asiático transformou-se na última década no segundo maior fornecedor de produtos têxteis do mundo, com 3,5 mil empresas exportando, 4 milhões de trabalhadores e investimentos externos no valor de US$ 19 bilhões. Mas a chegada dos investimentos só ocorreu graças a um fator: 90% desses trabalhadores ganham apenas US$ 1,1 por dia, o que permite à indústria têxtil mundial a movimentar US$ 1 trilhão por ano e gerar lucros, mesmo em plena crise mundial.
As multinacionais da moda não escolheram Bangladesh por acaso. O país tem o menor salário mínimo do planeta: US$ 38 por mês. Para o sindicato internacional IndustriALL, bastaria um aumento de US$ 0,02 no preço de cada camisa vendida no Ocidente para garantir que a renda dos trabalhadores em Bangladesh dobrasse. Com US$ 0,10 a mais, todas as 3,5 mil fábricas poderiam ser renovadas e estar dentro dos padrões europeus.
Quando o edifício Rana Plaza desabou o impacto foi global. Algumas empresas rapidamente reconheceram seu envolvimento. Outras, negaram, mesmo depois que suas etiquetas foram encontradas ensanguentadas entre corpos – entre elas a italiana Benetton e a alemã Kik.
O Rana Plaza era o espelho da expansão descontrolada do setor no país. O prédio ganhou três andares suplementares para garantir uma maior produção. Mas, num país com falta de investimentos em energia, geradores muito pesados foram colocados no teto, vibrando 24 horas por dia. A capital, Daca, situa-se em uma zona de terremoto e, segundo a ONU, 72 mil edifícios não resistiriam a um desastre natural de magnitude 6.
Empresas como a inglesa Primark e a canadense Loblaw admitiram sua produção no prédio que desabou. Mas lançaram um desafio ao fato de que outras 28 empresas ocidentais estavam em silêncio sobre sua participação. Nos dias após o colapso, campanhas promovidas por ativistas reuniram mais de 1 milhão de assinaturas cobrando uma resposta das empresas têxteis ocidentais.
Depois de semanas de negociações, um acordo foi obtido na quarta-feira na Suíça, envolvendo gigantes como a H&M, Zara, Hennes & Mauritz AB, PVH, Tchibo, Tesco, Marks & Spencer, El Corte Inglés, Mango, Carrefour, Benetton, Esprit e C&A. O plano prevê que inspeções independentes sobre a segurança das fábricas serão realizadas e obras terão de ser feitas em locais que não cumpram padrões mínimos. As empresas Ocidentais ainda se comprometem legalmente a garantir a segurança dos trabalhadores e asseguram que o fornecedor que se recusar a seguir essa linha terá seu contrato suspenso.
Mas as empresas não deixam de atacar o governo de Bangladesh, apontando para inspetores que fazem visitas apenas para receber propinas e leis pouco transparentes sobre os direitos de trabalhadores.
A maior rede de varejo do mundo, o Walmart, rejeitou aderir ao acordo e disse que realizará de forma independente a vistoria sobre as 279 fábricas instaladas em Bangladesh. O problema é que essa não é a primeira vez que o Walmart faz tal promessa. Em novembro, uma outra fábrica foi destruída por um incêndio que matou 112 pessoas, levando o Walmart a anunciar que estava rompendo o acordo de fornecimento com a empresa.
Nas ruas de Daca, nem mesmo o acordo acalmou os trabalhadores. Ao menos mil fábricas estão paralisadas pelos protestos que, segundo observadores, ganham dimensões políticas. Cerca de 70 deputados nacionais são donos de empresas do setor têxtil.
Gilbert Houngbou, vice-diretor da Organização Internacional do Trabalho, admitiu ao Estado que um dos temores é que a crise seja usada justamente por grupos islâmicos radicais para atrair a população frustrada pelas mortes e mobilizar um apoio popular suficiente para depor o governo. “Esse aspecto político é real”, declarou.
Os militantes logo perceberam que poderiam aproveitar o sentimento de indignação para ganhar força. Manifestantes saíram às ruas e pelo menos 22 pessoas morreram em choques com a polícia. O governo sabe que os radicais estão usando a crise e vem apelando à comunidade internacional a não promover um boicote sobre as exportações do país. Daca teme que o abandono das empresas Ocidentais amplie a miséria, que apenas garantiria o avanço dos islâmicos.