Bia Barbosa – para o Observatório do Direito à Comunicação
TUNIS – Em sua terceira edição mundial, o Fórum de Mídia Livre chegou a Tunis com uma dupla missão. Inserido na programação do Fórum Social Mundial 2013, o FMML tinha como objetivo, em primeiro lugar, integrar os inúmeros atores, ativistas, organizações e mídias alternativas e independentes da região do norte da África e Oriente Médio – que estão no centro das revoluções ainda em curso no Magreb-Mackreck – ao movimento internacional em defesa do direito à comunicação. Em segundo, dar visibilidade às suas demandas e mais urgentes necessidades, como parte de uma dinâmica de solidariedade internacional, sem a qual nenhuma luta pode, se fato, ser vitoriosa.
O desafio não era pequeno. Dois anos depois do pontapé dado à Primavera Árabe, a Tunísia passa atualmente por um processo complexo, conflituoso e, por vezes, contraditório. Após a queda do ditador Ben Ali, o novo governo conservador islâmico não rompeu totalmente com a política anterior e segue sendo questionado pela população, que clama por liberdade, dignidade e justiça social, e que combate permanentemente nas ruas a hegemonia cultural e os valores das elites dirigentes.
Num contexto de perda de confiança nas instituições e forte confrontação ideológica, o principal líder da oposição, Chokri Belaid, foi assassinado a dois meses do início do FSM, numa tentativa de calar a voz daqueles que buscam transformações reais e o estabelecimento da democracia no país. Neste cenário, a luta pela liberdade de expressão e pela construção de uma mídia livre, alternativa e independente se mostra cada vez mais estratégica na região.
O Fórum Mundial de Mídia Livre se constituiu então num espaço de trocas e construção de conhecimento em torno desta agenda global. Depois de duas edições no Brasil (Belém 2009 e Rio de Janeiro 2012), onde o centro do debate foram as experiências de marcos regulatórios democratizantes na América Latina, o FMML desta vez conheceu e deu voz a um novo ciclo de lutas e revoluções.
“A repressão continua mesmo após a queda de Ben Ali”, contou Bessen Krifa, da Associação Tunisiana de Blogueiros, que foi preso duas vezes durante a ditadura e uma vez depois da queda do antigo regime. “A censura existe na internet, inclusive sobre os jornalistas profissionais, principalmente contra o jornalismo de investigação. Precisamos urgentemente de informações verdadeiras. Nosso dever é defender a verdade, para que o nosso chamado seja ouvido”, afirmou.
“Num país como o meu, em que a democracia é apenas uma palavra, as pessoas têm medo de se expressar. Enfrentar o medo de ser atacado por dizer o que pensamos é, portanto, nosso primeiro desafio”, acrescentou Victor Nzuzi, do Congo.
Nas novas ou antigas mídias, o desafio é enorme. No Mali, a rádio comunitária Kayira, criada pelos líderes da revolução de 1991, que transformou o país, é o testemunho de 20 anos de perseguições contra aqueles que se erguem contra o poder dominante. No ano passado, salas da associação responsável pela rádio foram queimadas. Dia 3 de janeiro deste ano, um jornalista da emissora foi atingido por um tiro de fuzil caseiro. Em fevereiro, depois de receber ameaças, o produtor da rádio foi apunhalado na cabeça e não resistiu.
“Claramente foi um assassinato político”, conta Mahamadou Diarra, também criminalizado e em liberdade provisória. “Nossa rádio trabalha com o movimento campesino e de mulheres. Fazemos atividades de formação e encorajamos as pessoas a criarem associações locais”, explica. Tudo isso incomoda. Neste momento, por exemplo, a Kayira se opõe publicamente à intervenção francesa no Mali. “Uma solução importada não será sustentável. Queremos um diálogo e uma negociação com todos os grupos para resolver o problema internamente”, diz Diarra. A luta maior da emissora, no entanto, é pela própria sobrevivência. “Precisamos de diversidade de informação, algo que vá além da RFI e da France 24 [rádios francesas transmitidas no país]. A tradição oral é muito importante no Mali, então temos que discutir como preservar nossas mídias locais, e a rádio é importante para a sobrevivência dessa cultura”, afirma.
Na avaliação da presidenta da Associação Mundial de Rádios Comunitárias, a chilena Maria Pía Matta, a primeira missão dessas emissoras é promover a democratização da palavra, cada dia mais concentrada em poucas mãos. Em Tunis, Pía lembrou que a concentração dos meios inibe a existência de leis que garantam sistemas democráticos de comunicação.
Na própria Tunísia, onde a mídia alternativa foi amplamente utilizada no processo revolucionário, não há uma legislação que garanta a liberdade de expressão, e a família de Ben Ali continua controlando os grandes meios. Após as eleições em 2011, três projetos de lei passaram a tratar do tema: um focado no acesso à informação, outro na liberdade de imprensa e, por fim, um tratando de um sistema de regulação independente de radiodifusão. Somente o primeiro avançou. No Egito, apesar de oito novas emissoras de TV terem sido criadas após a queda de Hosni Mubarak, o espaço público segue controlado pelas grandes corporações midiáticas. “Muitos governos não reconhecem a comunicação como um direito humano. Mas é o direito à palavra que possibilita nos manifestarmos e termos direito a outras coisas”, lembrou Maria Pía Matta.
Na Palestina ocupada, um dos temas centrais nesta edição do Fórum Social Mundial, a comunicação alternativa se mostra fundamental para desmistificar o que a grande mídia relata de forma homogênea. “Um mundo árabe uniforme, onde só há terroristas, bárbaros que não se desenvolveram e onde as mulheres são submissas. Mas a realidade é outra. O protagonismo das mulheres na luta contra a ocupação e para ter uma mídia livre e independente é histórico. Israel tem reforçado as prisões e há dezenas de jornalistas detidos por defenderem a liberdade de expressão. Neste sentido, a solidariedade internacional da mídia livre é fundamental na luta palestina”, avalia Soraya Misleh, do Movimento Palestina para Todos.
Memória e conhecimentos livres
Em um de seus momentos mais simbólicos, o III Fórum Mundial de Mídia Livre homenageou, num memorial idealizado pela Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada, aqueles/as que tombaram exercendo sua liberdade de expressão em todo o mundo. Um dos nomes é o de Fidan Dogan, do Curdistão. A ativista chegou a participar do II Fórum Mundial de Mídia Livre, realizado em junho passado na Cúpula dos Povos da Rio+20, buscando visibilidade para a luta do povo curdo, ignorada pela imprensa tradicional. Fidan era responsável pelo Centro de Informação do Curdistão em Paris, onde foi executada em janeiro deste ano, ao lado de outras duas militantes da luta do povo sem estado, por reconhecimento político e liberdade.
Na exposição de memória, ao lado de Fidan Dogan, o retrato de Aaron Swartz, ciberativista americano que se suicidou em janeiro, aos 26 anos. Aaron estava sendo julgado e poderia ser condenado a US$ 1 milhão em multas e a até 35 anos de prisão por baixar artigos científicos de um periódico do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), cujo acesso defendia ser livre. Sua assinatura está presente em inúmeras ferramentas de compartilhamento de conteúdo na internet. Swartz ajudou a criar o sistema RSS e foi um dos fundadores da rede social Reddit – site de compartilhamento de informações – e da organização ativista Demand Progress, que promove campanhas online sobre questões sociais.
Após sua morte, a promotoria federal em Boston retirou as acusações contra Aaron Swartz. Mas as ameaças à liberdade na internet seguem crescentes em todo o mundo, e também foram temas de inúmeros debates no Fórum de Mídia Livre em Tunis. O esforço é aproximar movimentos sociais que utilizam soluções corporativas e ativistas do software, redes e tecnologias livres, para que trabalhem juntos pela transformação social.
“É preciso buscar a coerência entre a idéia que queremos transmitir e os meios que usamos para transmiti-la. E, quando falamos de mídia, desconhecer as ferramentas que utilizamos é um fator negativo para nós. Cada ação que praticamos impacta no mundo de hoje e na construção do mundo em que viveremos no futuro”, alerta o uruguaio Luis Anibal, do coletivo Hipatia. “Nossos dados e memórias são muito importantes para serem controlados pela empresa de Zuckerberg [dono do Facebook]”, acrescentou Alexia Haché, do coletivo Lorea, da Cataluña, que promoveu uma série de oficinas no Hacklab – o laboratório hacker do Fórum Mundial de Mídia Livre.
Na Venezuela de Hugo Chávez, o processo de nacionalização do petróleo correu o risco de ser bloqueado pela ação das empresas americanas que detinham a propriedade intelectual dos softwares de exploração petrolífera. A ação de hackers e o desenvolvimento de softwares livres virou o jogo e possibilitou a soberania tecnológica e energética do país. O episódio ficou conhecido como o resgate do cérebro da PDVSA.
“O ministro venezuelano do Desenvolvimento, Felipe Perez Marti, entendeu que, se havia algo que poderia resolver o problema da Venezuela, seria o software livre. Em uma semana, hackers quebraram o código proprietário e foi feita toda a migração da tecnologia da indústria do petróleo para o software livre”, contou Juan Carlos Gentile Fagundez, também do Hipatia e assessor de Chávez neste processo. Assim como os blogueiros e radialistas do Maghreb-Machrek, Gentile sofreu sabotagens e recebeu ameaças de morte por ter colocado o acesso ao conhecimento acima da mercantilização de um bem público.
“No final das contas, não se trata de um debate restrito a plataformas, mas de valores que queremos para o mundo”, explica Rita Freire, da Ciranda. “Mais do que ferramentas, o software livre tem princípios e um modelo de criação baseado no bem comum. É importante então olhar, para além da apropriação tecnológica, para o potencial de transformação desses valores. É isso que buscamos aqui”, concluiu o canadense Stephane Couture, do coletivo Koombit.