O crescimento da demanda doméstica brasileira por produtos industrializados atendido pelas importações de produtos chineses na última década criou cerca de 1 milhão de empregos na indústria de transformação da China. O número equivale a 12% dos 8,29 milhões de trabalhadores formais que a indústria de transformação brasileira mantinha em fim de 2013, segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).
Essa é a conclusão de cálculos feitos pelo economista Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA/USP), em um trabalho que tem como tema a desindustrialização brasileira. A ideia do cálculo é saber quantos empregos poderiam ter sido gerados no Brasil caso o crescimento da demanda de produtos industrializados de 2004 a 2013 atendido pela importação de produtos chineses tivesse sido suprido pela indústria doméstica. O cálculo foi feito em relação à China porque o país é o principal fornecedor externo ao Brasil desde 2012 e 98% do que os brasileiros compram dos chineses são produtos manufaturados, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento (Mdic).
De acordo com o levantamento, o número de trabalhadores empregados na indústria de transformação da China na fabricação de produtos para o Brasil cresceu de 693 mil em 2004 para 1,78 milhão em 2013. A conta levou em consideração a população economicamente ativa em cada um dos períodos, a partir da qual foi estimado o número total de trabalhadores chineses empregados na indústria de transformação voltada para exportação. O número de trabalhadores foi estimado com base na participação da importação brasileira de produtos “made in China” na exportação total do país asiático.
O quadro, diz Feldmann, é resultado da política chinesa da produção em larga escala voltada à exportação. Isso gerou maior fatia da importação made in China dentro dos desembarques totais brasileiros. E, no período mais recente, a partir do pós-crise, em 2009, as importações com origem no país asiático ganharam força em razão da desvalorização do real frente ao dólar. “Ao contrário do Brasil, a China manteve sua moeda desvalorizada. Isso, aliada com a nossa péssima infraestrutura, encareceu a fabricação no mercado doméstico.” Para ele, entre os custos industriais relevantes estão os gastos com transporte e energia elétrica, além da carga tributária e do custo dos financiamentos.
Para o economista, a dificuldade da indústria brasileira de competir com o importado chinês é evidente quando se compara os dados da indústria doméstica de transformação com as importações chinesas. Ao mesmo tempo em que a indústria perdeu participação na economia, os produtos chineses avançaram nos desembarques brasileiros.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) caiu de 19,2% em 2004 pra 13,1% no ano passado.
Em 2004 a China era ainda o quinto fornecedor mais importante para o Brasil, atrás de Estados Unidos, Argentina, Alemanha e Japão. Na época, os produtos chineses começavam seu avanço e representavam 7,7% dos desembarques totais brasileiros. O ritmo da importação brasileira de produtos chineses a partir de 2004 foi muito maior que os desembarques originados dos demais fornecedores externos.
Como resultado, em 2012 a China se tornou o principal fornecedor para o Brasil, assim permaneceu em 2013 e não deverá perder esta posição este ano. No ano passado, o Brasil comprou US$ 37,3 bilhões em produtos chineses, o que representou 15,6% da importação total brasileira.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) tem uma conta sobre o número de vagas que deixaram de ser criadas na indústria de transformação brasileira devido às importações originárias da China. Segundo cálculos do departamento de competitividade da Fiesp, deixaram de ser criados 355 mil vagas nos últimos cinco anos. Ou seja, de 2008 a 2013.
A conta considera as importações de produtos industriais – subtraindo da conta os básicos – made in China em 2013, de US$ 36,4 bilhões em 2013, e o nível da produção da indústria de transformação brasileira, de cerca de R$ 2 trilhões em 2013.
O valor da importação chinesa, ressalta o diretor de competitividade da Fiesp, José Ricardo Roriz Coelho, representa em torno de 4% da produção industrial brasileira, na média do período entre 2008 e 2013, e por volta de 17% da pauta de importação de produtos industriais. O cálculo da Fiesp leva em consideração o número de trabalhadores da indústria de transformação contabilizados pela Rais.
Independentemente do número, o que fica claro, diz Roriz, é que a maior disponibilidade de renda, a elevação real de salários e a melhor distribuição de renda da população brasileira nos últimos anos foram apropriadas principalmente pelas importações.
O milhão de vagas adicionais que Feldmann estima que foram criadas nos últimos dez anos na China equivale a 12% do contingente de trabalhadores brasileiros na indústria de transformação segundo a Rais, que só contabiliza os profissionais com carteira assinada. De 2004 até o ano passado, foram criadas, ainda segundo a Rais, 2,36 milhões de vagas adicionais na indústria de transformação.
Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, porém, que inclui, além do mercado formal, o chamado trabalhador por conta própria e aqueles sem carteira assinada, o total de ocupados na indústria de transformação somava 12,22 milhões no ano passado.
Levando em conta esse dado, o milhão de vagas criadas na China seria equivalente a uma fatia menor, de 8,18%. Mas o número de vagas criadas na indústria de transformação pelos critérios da Pnad de 2004 a 2013 foi de 453 mil vagas. Ou seja, praticamente metade da quantidade de postos criada na China com a importação de produtos do país asiático pelo Brasil.
Uma das explicações para a diferença de evolução entre os números da Pnad e os da Rais está no processo de formalização de empregos nos últimos dez anos. Esse é um dos motivos pelo qual a alta do total de ocupados na indústria, estimada na Pnad, foi bem menor que a da Rais, que captura somente os trabalhadores com carteira assinada.
Para Feldmann outro dado que mostra o enfraquecimento da indústria de transformação é o recuo de participação dos trabalhadores do setor. Dados levantados pela LCA mostram que a fatia de ocupados na indústria de transformação caiu de 13,8% em 2004 para 12,6% do total da população ocupada em 2013, segundo a Pnad. Pela Rais, a taxa de trabalhadores formais da indústria caiu de 18,9% para 16,9% do estoque total de profissionais com carteira no mesmo período.
Para Fabio Romão, consultor da LCA, é inegável que a indústria passou por uma deterioração nos anos mais recentes (mais claramente a partir de 2012). Ele lembra, porém, que, outros fatores também contribuíram para a redução da fatia da indústria. Em parte, esse recuo de participação da indústria no estoque de trabalhadores esteve ligado, diz ele, ao incremento dos trabalhadores de outros dois setores: da construção (que mostrou forte retomada entre 2005 e 2010) e dos serviços. Neste último caso, ressalta, uma tendência global.
Feldmann defende que a reversão do quadro de perda de competitividade da indústria doméstica demanda forte desvalorização do real frente ao dólar, acompanhando de uma política de governo para recuperação do setor. “A hora para isso é agora, porque o consumo está caindo, o que diminui a pressão inflacionária.”
Para Lia Valls, professora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), a questão não se resume a câmbio. Além da relação de preços entre produtos comercializáveis e não comercializáveis, que relativiza o efeito da taxa de câmbio nominal, diz Lia, é preciso levar que o custo unitário do trabalho no país é ainda muito elevado. “Também há ainda grande instabilidade cambial e necessidade de melhorar a produtividade.”