Por Danilo Tavares da Silva
Embora tenha sido editada com o propósito manifesto de viabilizar investimentos no setor portuário, a Medida Provisória 595 contém dispositivos que tendem a produzir o resultado inverso. Isso é especialmente claro no caso dos terminais privados voltados à movimentação de carga própria, os assim chamados “Portos indústria”.
Apesar de o conceito de “carga própria” não fazer parte do texto original da MP 595, ele persiste como realidade econômica – ainda existem e continuarão a existir empresas que possuem interesse em investir em infraestrutura portuária como um elemento de internalização de sua cadeia logística, isso é, com a finalidade principal de atender à própria demanda de transporte.
Em alguns empreendimentos, a possibilidade de se utilizar um terminal para uso predominante de movimentação da própria produção pode ser decisiva para a viabilidade do negócio. Todavia, segundo a MP 595, não se pode afirmar que um agente econômico tem o direito de obter autorização para instalar um terminal para essa espécie de uso, mesmo no caso de possuir terreno defronte ao mar e apto ao devido licenciamento ambiental.
A sistemática de chamada e processo seletivo públicos do texto original da Medida Provisória, que acaba por instaurar um regime de escolha de terminais, restringindo a livre iniciativa, pode produzir resultados interessantes na ampliação da oferta de serviços de movimentação de contêineres, principalmente se for associada a um plano de outorgas bem concebido.
A polêmica concorrencial envolvendo terminais públicos e privados de contêineres foi, talvez, a maior motivação da edição da MP 595, que se destina também a estabelecer uma convivência de regimes de prestação de serviço segundo o qual a iniciativa privada não inviabilize as atividades nos portos públicos concernentes à movimentação de carga geral.
Porém, essa mesma sistemática tende a ser ineficiente na criação de empreendimentos portuários concebidos para “consumo da própria empresa”, por assim dizer. E isso é especialmente prejudicial para os setores da economia que lidam com cargas em granéis, pois, na impossibilidade de o interessado arcar com investimento necessário para viabilizar sua atividade, cria-se uma demanda que pressiona um terceiro a assumir tal tarefa, com consequências que podem ser indesejáveis.
Caso esse terceiro seja o Estado, impelido a expandir a capacidade de um porto público, serão utilizados recursos de toda a sociedade para atender ao interesse de um grupo – que tende a ser composto de reduzido número de empresas. Haverá, pois, uma socialização de custos, exigindo uma avaliação das vantagens econômicas em geral propiciadas pelo investimento público em prol de um setor específico.
Se esse terceiro for uma empresa privada vencedora de um processo de chamada e seleção, não se tem a garantia de que o terminal privado vá possuir as especificações técnicas suficientes para a movimentação que lhe será demandada; além disso, o regime de liberdade de preços em favor do autorizatário não garante que o acesso ao serviço se fará em condições comerciais condizentes com o modelo de negócios concebido pelas empresas que demandam a operação portuária.
Em verdade, na medida em que os interesses do demandador do serviço portuário (menor preço e garantia de movimentação futura) e os do autorizatário do terminal privado (menor custo na implantação do empreendimento e maior preço) sejam conflitantes – e o texto original da MP 595 não atenua tal conflito potencial -, os agentes viabilizadores da infraestrutura dificilmente chegarão a um acordo eficiente e socialmente desejado, criando-se o risco de haver terminais privados sem carga para movimentar e empresas produtoras sem soluções logísticas que lhes sejam adequadas. Trata-se de um cenário indesejado, uma hipótese realmente extremada, mas que não deve ser desconsiderada.
Por isso é que o texto que resultará da conversão da Medida Provisória 595 em lei poderia contemplar, de maneira minimamente detalhada e clara, os mecanismos de solução destes e de outros problemas e impasses que acabam por ser decisivos no sucesso da atração de investimentos privados, tais como: os critérios de seleção dos terminais privados, os parâmetros das condições de acesso às instalações e as hipóteses de “reversão sem ônus” à União (na verdade, um confisco de duvidosa constitucionalidade) das instalações no caso de cessação das atividades.
Todos esses temas podem receber aperfeiçoamentos sem que se desvirtue em nada a essência do projeto do governo. Nesse sentido, o projeto de lei de conversão apresentado pelo relator da MP parece ter sido bem-sucedido.
Caso se mantenha o texto original da MP 595 e, por consequência, o detalhamento dos temas aqui expostos fique por conta exclusivamente dos regulamentos a que alude a Medida Provisória em diversos dispositivos, cabe esperar pelo conteúdo dos futuros decretos presidenciais, atos da Secretaria Especial dos Portos e resoluções da Antaq para que se consiga, enfim, entender por inteiro a política portuária que se pretende implantar. E que ela seja capaz de promover os investimentos a tempo e modo compatíveis com os desafios de provimento de infraestrutura em favor do crescimento da economia brasileira.
Danilo Tavares da Silva é mestre em direito econômico pela USP, professor de direito econômico da Universidade São Judas Tadeu e da Fundação Getúlio Vargas/GVLaw. Advogado associado do escritório Sampaio Ferraz Advogados.