Falta de preparo dos agentes de segurança para receber denúncia e vínculo emocional com agressor são dois dos fatores que contribuem para a dificuldade de denunciar.
Olívia Henriques e Tatiana Regadas
A cada dois segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil. A cada 1.4 segundo uma mulher é vítima de assédio. Os dados são do Instituto Maria da Penha e usam como base a pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizada em fevereiro de 2017, em 130 municípios.
Apesar de os números serem alarmantes, muito casos não entram para as estatísticas porque não são denunciados. Mas o que leva várias mulheres a não denunciarem crimes do tipo?
O G1 conversou com promotora de Justiça Silvia Chakian, integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público de São Paulo, e com Maíra Liguori, diretora da ONG Think Olga, para entender melhor este cenário.
1 – Descrédito
Um dos motivos é o medo de que, na hora da denúncia, a mulher será desacreditada. O Brasil possui delegacias especializadas no atendimento à mulher, mas, apesar disso a reprodução de comportamentos machistas afasta a vítima.
“Quando uma mulher denuncia assédio, ela sofre violência em dobro. Vão questionar suas vestimentas, sua conduta, o horário em que ela estava na rua, vão minimizar seu relato, questionar sua palavra. E isso acontece em todas as instâncias, do ambiente doméstico à delegacia, passando pelo hospital”, diz Maíra, que desde 2013 trabalha para levar informação de temas importantes ao público feminino.
2 – Perfil público do autor
Outro problema é como a figura do agressor se comporta com outras pessoas. Silvia ressalta que muitas vezes um “bom amigo” pode ter um perfil diferente dentro de relacionamento.
“As pessoas acreditam que um agressor tem uma cara, que parece ‘criminoso’, que tem antecedentes. Mas não é assim. O agressor trabalha, tem uma boa reputação, paga impostos. Quando a mulher expõe a violência, tem dificuldade de encontrar testemunhas. Os amigos dizem que é uma ótima pessoa, bom profissional, bom colega de trabalho. A palavra dela acaba sendo desacreditada. As pessoas não conseguem relacionar aquele cara gente boa, bom amigo, com um agressor, então é como se ela estivesse mentindo, exagerando”, explica Maíra.
3 – Vínculo
Nos casos de violência doméstica, a decisão de denunciar o agressor é sempre mais difícil. A vítima tem geralmente um vínculo não apenas financeiro, como emocional com o agressor.
“Este não é um tema com solução fácil. Para cada mulher este problema se apresenta diferentemente, cheio de nuances. A sociedade se exime de qualquer responsabilidade, com a máxima de que ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’. Estas mulheres estão abandonadas. Porém uma coisa é certa: se tivéssemos um serviço amplo e eficiente por parte do Estado, mais e mais mulheres se sentiriam seguras e amparadas para procurar ajuda”, diz Maíra.
E é este vínculo que muitas vezes faz com que a vítima não reconheça a violência. “Apesar dos avanços da Lei Maria da Penha, que devem ser ressaltados, muitas mulheres sequer se compreendem vítimas. Principalmente nas violências mais sutis. Muitas mulheres confundem relacionamentos abusivos com zelo, excesso de amor”, ressalta a promotora Silvia.
4 – Vergonha da exposição
A sociedade vê o casamento como parte de uma vida de “sucesso”. Assumir que essa relação tem problemas é um passo difícil para muitas mulheres. A vergonha de expor as agressões para a sociedade e mesmo para agentes públicos é uma barreira que precisa ser quebrada para encerrar o ciclo de violência, segundo as especialistas.
“Muitas mulheres têm dificuldade em falar sobre o que estão vivendo por medo dessa exposição, do que os outros vão pensar. A mulher tem aquele ideal do casamento para a vida toda, não quer criar os filhos longe do pai, então acabam sustentando uma situação de violência por mais tempo”, explica Silvia.
5 – Machismo
As especialistas apontam que o machismo é cultural e faz parte da sociedade brasileira. Além dos homens, mulheres também repetem padrões de comportamento que denigrem a mulher, corroboram para a violência de gênero e tornam aceitáveis agressões e assédios.
Para Maíra, assédio e a violência contra a mulher só serão levados a sério se o debate continuar: “Não há outro caminho senão o da educação. Vai ser falando cada vez mais sobre o assunto, debatendo nos mais diferentes círculos, trazendo estas questões para conversas nas escolas e, claro, denunciando. Existe uma camada de silêncio que encobre todos os tipos de violência contra a mulher e isso não pode continuar. Educar-se sobre o tema é responsabilidade de homens e mulheres.”
Segundo ela, a denúncia, o processo, são importantes, mas a mudança deve ser social. “Na nossa sociedade, o comportamento machista é aprendido desde a infância. Desconstruir essa forma de lidar com a mulher é muito importante. Ao mesmo tempo, a gente não pode esperar a sociedade melhorar. A Justiça precisa agir agora. Quando uma mulher denuncia, diz que está sendo ameaçada, a gente precisa agir hoje. Porque se ela vai para casa, ela morre. Ela e as filhas dela. Então a gente precisa realmente de uma efetivação da Lei Maria da Penha”, analisa Silvia.
“Vai querer me matar”
Foi o caso de N.P., 24 anos. Namorando há três anos, ela sofreu com a violência do companheiro durante e após o término do relacionamento. Foi só depois de ser perseguida pelo agora ex-namorado que ela criou coragem para denunciar tudo o que sofreu.
Uma das agressões aconteceu no corredor do prédio onde o casal morava e a polícia foi chamada pelas vizinhas. Naquele dia, N.P. achou que o “susto” de ter sido controlado pela polícia era suficiente e não levou o caso para a delegacia. “Achei que ele tinha ficado assustado o suficiente com a polícia. Fiquei com pena dele. Eu fui só depois fazer um BO quando ele ficou me perseguindo. Queria ter pedido uma medida protetiva, mas a delegada desaconselhou, porque, como eu não tinha laudo do IML, o juiz provavelmente negaria.”
Sem o boletim de ocorrência e o laudo do IML, ela precisa levar duas testemunhas para embasar o pedido e só então pedir a medida protetiva. “Quem não denuncia na hora e vai no IML para atestar a agressão acaba se prejudicando muito”.
Com o processo em andamento, N.P. diz que as ameaças pararam, mas ainda não se sente segura. “Não duvido nada que vá continuar (com as ameaças) quando for chamado para depor. Vai querer me matar.”
Pequena mudança
Nos últimos anos, o tema tem sido mais debatido. E com mais discussão, mais mulheres se sentem confortáveis para falar e denunciar, mesmo que ainda haja muito a avançar.
Exemplo do efeito cascata é o movimento Time’s Up. Criado por atrizes, diretoras e produtoras da indústria do cinema americano, o movimento surgiu depois que diversas denúncias contra o produtor Harvey Weistein vieram à tona.
“Quando uma fala, a outra também fala. E esse conjunto de vítimas se fortalece. A violência contra a mulher sempre existiu, mas ela existia entre quatro paredes. Hoje as mulheres estão falando sobre isso e isso incomoda, porque a sociedade não quer ouvir”, afirma Silvia.
“Grupos feministas têm sido fundamentais para agregar pessoas, espalhar conceitos e clamar por direitos. O trabalho destas mulheres, incluindo o da Think Olga, é exaustivo. Porém ainda atinge uma parcela pequena da sociedade. Este é um problema global, que independe de raça, classe social, região. Faz parte de ser mulher. E isso precisa acabar”, diz Maíra.