A reforma que, sem alarde, mira o trabalhador rural

Projeto promovido pela bancada ruralista quer alterar relações de trabalho no agronegócio, enfraquecendo fiscalização no ambiente rural. “É muito pior que legislação da ditadura”, alerta especialista.
Divulga a agência DW Brasil.

A bancada ruralista na Câmara se organiza para aprovar um projeto que altera profundamente as relações de trabalho no campo. De autoria do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a proposta está tramitando silenciosamente na Câmara desde novembro, sem gerar o mesmo barulho que as reformas da Previdência e do regime dos trabalhadores urbanos. Seu teor, no entanto, não é menos controverso.

Originalmente, a bancada queria incluir os pontos do PL 6.442/16 na já aprovada reforma trabalhista, mas foi avaliado que eles aumentariam a resistência ao projeto como um todo. Nilson Leitão resolveu então reempacotar os itens, que foram apresentados como um projeto de modernização da legislação que trata especificamente do trabalho rural, em vigor desde 1973. De acordo com o texto, os 21 artigos da atual legislação devem dar lugar a um calhamaço com mais de 160 itens. A proposta ainda aguarda a nomeação dos membros de uma comissão especial que vai discutir seu teor.

Na justificativa, Leitão não cita em nenhum momento a palavra “proteção” quando se refere aos trabalhadores rurais, mas é explícito ao afirmar que a nova legislação pretende “o aumento dos lucros e redução de custos”. Também diz que as “as normas existentes são em grande medida subjetivas”, o que deixaria o “produtor rural” em situação de “insegurança jurídica” diante da Justiça do Trabalho e dos fiscais.

Jornada de 12 horas
Os novos artigos querem permitir que as jornadas no campo possam ser esticadas por até 12 horas; que normas básicas de higiene, saúde e alimentação sejam ignoradas em determinadas condições; que o repouso semanal possa ser substituído por um período contínuo de trabalho de até 18 dias; que os produtores se livrem em um primeiro momento de serem multados por fiscais do trabalho, estabelecendo uma regra de dupla visita; deixa a fixação de regras para o uso de agrotóxicos exclusivamente a cargo do Ministério da Agricultura, ignorando as pastas da Saúde e do Trabalho.

Um dos artigos afirma que a CLT não deve ser aplicada subsidiariamente nas relações de trabalho rural e solidifica a permissão para terceirização geral no setor. Também há itens similares ao da reforma trabalhista, como acordos coletivos prevalecendo sobre a legislação, o fim da inclusão na jornada do tempo de deslocamento até o local de trabalho, e o estabelecimento do trabalho intermitente (em dias variados e conforme disponibilidade, sem precisar ser contínuo).

Para o professor de direito do trabalho Antonio Rodrigues de Freitas, da USP, o efeito principal da aprovação de um projeto desses seria enfraquecer de vez a fiscalização do trabalho no ambiente rural. Ele classifica a coisa toda como um “retrocesso” e diz que o projeto é muito pior do que a legislação de 1973, aprovada nos anos de chumbo do regime militar.

“A legislação de 73 pretendia acabar com a figura trágica do boia-fria e tirar o Brasil da posição de campeão de acidentes de trabalho. Os militares encaravam isso como ruim para a imagem do país. O projeto atual não tem essa preocupação e efetivamente sabota a fiscalização no campo e os mecanismos que desestimulam a existência dos boias-frias e do trabalho forçado no campo”, afirmou. Ele também afirma ver com preocupação a expansão da terceirização no campo, que pode favorecer ainda mais a precarização do trabalho e abusos.

“Pagamento com comida”
Um artigo em especial já gerou controvérsia pública: o que trata da própria definição de trabalhador rural, ao afirmar que “emprego rural é toda pessoa física que (…) presta serviços de natureza não eventual a empregador rural (…) mediante salário ou remuneração de qualquer espécie”. Essa “remuneração de qualquer espécie” foi interpretada por grupos que representam trabalhadores rurais como uma forma de simplesmente efetuar pagamento com comida e/ou moradia, sem envolver dinheiro, uma espécie de reinstituição da corveia medieval.

Após o artigo ser tema de uma reportagem do jornal Valor, o deputado Leitão negou que trabalhadores possam ser pagos apenas com comida e moradia. Em nota, ele disse que o “salário é sagrado” e acusou os críticos do texto praticarem “terrorismo social” sem “sequer ler o texto”. Um item do projeto, de fato, estabelece que o fornecimento de comida e moradia não pode superar entre e 20% e 25% do salário. Segundo o professor Freitas, ainda assim o texto do projeto pode eventualmente abrir uma brecha para que os trabalhadores possam ter o salário reduzido ou serem pagos apenas com comida.

Há outros pontos controversos. Um deles exime o empregador de fornecer banheiros ou água potável em condições de terreno de difícil acesso ou de “vegetação fechada”. “Esse tipo de coisa é eloquente sobre a natureza retrógrada do projeto”, opina Freitas.

Ainda segundo o professor, o projeto bate de frente com alguns artigos da Constituição e revela “ignorância em relação ao processo legislativo”. “O projeto de lei tenta anular portarias. Isso não pode ser feito por meio de um PL”, afirma. “Isso diz muito sobre a forma como a coisa está caminhando.”

Bancada ruralista
Autor da proposta, Nilson Leitão teve quase 60% da sua campanha em 2014 financiada por empresas do agronegócio, segundo levantamento da agência Pública. Ao lado do atual ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-PR), outro membro da bancada ruralista, Leitão é um dos principais promotores da controversa PEC 215, que transfere para o Legislativo a competência de demarcar terras indígenas.

Tramitação
O projeto aguarda instalação de comissão especial na Câmara dos Deputados para iniciar discussão da matéria.