Sergio Lamucci | De São Paulo
A capacidade de consumo do brasileiro, alvo de debate intenso nos últimos meses, dá sinais de estar longe do esgotamento. O comércio varejista ampliado continua a crescer em ritmo considerável, de 5,8% no acumulado de janeiro a maio, apesar do recuo de 0,8% das vendas de veículos e autopeças no período.
Esse desempenho ainda razoável se dá mesmo com a renda disponível do consumidor disputada por uma série de novas despesas, do financiamento imobiliário a vários serviços, como celular, TV a cabo, acesso à internet, educação, previdência privada e passagens aéreas.
Para alguns analistas, está em curso uma mudança no mix de consumo do brasileiro, que ainda tende a permanecer em crescimento robusto, amparado num cenário de desemprego baixíssimo, em que os salários ainda crescem com força – em maio, a renda nas seis principais regiões metropolitanas avançou 4,9% em relação a maio do ano anterior, já descontada a inflação, e os reajustes salariais obtidos pelos trabalhadores no primeiro semestre continuaram expressivos. Há sinais de piora no emprego na indústria, mas, pelo menos por enquanto, o cenário não é dos mais graves. O comprometimento de renda com o pagamento de dívidas aumentou e a inadimplência incomoda um pouco, mas não travou o consumo.
O economista-chefe do Bradesco, Octavio de Barros, acha um erro a avaliação de que o consumo está decepcionando no Brasil. “O desemprego está nas mínimas históricas, houve aumento forte do salário mínimo e a confiança do consumidor segue em níveis elevados. O Brasil tem aquilo que quase todos os países não têm no momento: demanda de consumo.”
O mercado de trabalho continua firme. Em maio, a taxa de desemprego ficou em 5,5%, na série com ajuste sazonal da LCA Consultores, o nível mais baixo da série iniciada em 2002. Com a desocupação nas mínimas históricas, a perspectiva é de alta na renda. Em abril e maio, o rendimento real caiu levemente na comparação com o mês anterior, mas as perspectivas continuam favoráveis. A menor oferta de mão de obra, com os jovens ficando mais tempo na escola, ajuda a manter o desemprego baixo e a renda pressionada, diz Barros. Ele projeta expansão de 3,9% para a renda real neste ano, mais que os 3% de 2011.
Para ele, um ponto fundamental é que, desde a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE de 2008/2009, “houve imensa mudança na estrutura de gastos das famílias”. O número de celulares, por exemplo, mais do que dobrou desde 2007, atingindo 242,3 milhões no ano passado. Além das despesas com celular, o consumidor tem uma série de novos gastos que disputam renda com os bens duráveis (automóveis e eletroeletrônicos, por exemplo) – pagamento da mensalidade da faculdade privada, acesso à internet, seguros e previdência privada.
Mesmo com essa maior concorrência, as vendas no varejo, que mostram o consumo de bens, seguem firmes, como ressalta o economista Aurélio Bicalho, do Itaú Unibanco. O comércio varejista restrito cresceu 9% no acumulado de janeiro a maio e 7,3% em 12 meses, enquanto o ampliado (que inclui veículos, autopeças e material de construção) aumentou 5,8% no ano e 5,3% em 12 meses.
Bicalho chama a atenção para as vendas de equipamentos e materiais de informática e escritório, que avançaram 28,1% no acumulado do ano. Mesmo as vendas de móveis e eletrodomésticos, que em maio recuaram 3,1% sobre abril, feito o ajuste sazonal, ainda cresceram 13,8% nos cinco primeiros meses de 2012. O mercado de trabalho aquecido e os juros em queda apontam para um quadro favorável para o consumo na segunda metade do ano, acredita.
O desempenho mais fraco do varejo ampliado em relação ao restrito se deve ao mau resultado das vendas de veículos neste ano. Elas perderam fôlego, porque muita gente comprou automóvel nos últimos anos e por causa do aperto nas condições de crédito pelos bancos, uma reação à alta mais forte da inadimplência no segmento. Essa onda de calotes foi decorrência do período em que as instituições financeiras relaxaram os critérios de concessão de crédito, emprestando muitas vezes em 60 meses ou até mais sem entrada.
As vendas de veículos, porém, se recuperaram com força em junho, como efeito da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A média diária de licenciamentos de automóveis e comerciais leves aumentou 35,4% sobre maio, segundo cálculos da LCA.
“Com isso, as vendas no varejo ampliado em junho devem subir algo como 5% em relação a maio”, estima o economista-chefe da LCA, Bráulio Borges. Em julho, até dia 19, a média diária de licenciamentos de automóveis e comerciais leves registra queda de 0,7% sobre junho, ainda assim mantendo-se num nível elevado, muito superior ao do período de janeiro a abril.
Barros considera normal que haja um crescimento mais moderado das vendas de veículos nos próximos anos. Além de muitos consumidores já terem adquirido automóveis, também há um novo mix de consumo entre carros e imóveis, diz ele. Foi o que ocorreu no México, quando o crédito imobiliário aumentou com força, e também parece estar em curso no Brasil, com o ritmo de financiamento de automóveis avançando a um ritmo mais lento (ver tabela). O crédito imobiliário, que envolve valores mais elevados, é a dívida encarada com prioridade pelo consumidor, com inadimplência muito baixa, lembra Barros.
Um ponto sobre o qual há mais dúvidas é em relação ao grau de endividamento do consumidor. Segundo números do Banco Central, o brasileiro comprometia em abril deste ano um pouco mais de 22% de sua renda mensal com o pagamento de dívidas. Para Barros, não é algo exagerado. Já Borges acredita que o percentual não é baixo, cerca do dobro do que se registra nos EUA, Chile, Europa e Nova Zelândia. Ele não vê, contudo, o número como muito problemático, dado o prazo médio das dívidas, pouco inferior a um ano. Com isso, há uma desalavancagem (o processo de redução do endividamento) bastante rápida.
Para Borges, como os juros cobradas ao consumidor estão em queda, puxados pelo corte de taxas promovido inicialmente pelo Banco do Brasil e pela Caixa, os consumidores estão trocando dívidas caras por outras mais baratas, o que aumenta a capacidade de consumo.
Por todos esses fatores, a expectativa dos analistas é que a retomada mais forte da economia continuará a ter no consumo o impulso mais importante. Enquanto o PIB deve crescer algo na casa de 2% ou menos, o consumo das famílias pode crescer ainda 4% ou mais.
Para Barros, “o consumo seguirá bem no Brasil, mas crescendo de forma mais moderada, em linha com a dinâmica da renda disponível, cada vez mais disputada pelo setor de serviços e pelo maior apetite por poupança da população”.
Segundo ele, as famílias brasileiras ainda estão muito longe de poupar como os asiáticos, mas há um esforço maior para guardar dinheiro. Números da Sondagem de Expectativas do Consumidor da Fundação Getulio Vargas (FGV), quase um quarto – 24,9% – dos entrevistados estava poupando em junho. De 2005 para cá, a média é de 17,9%.