Por Daniel Rittner e André Borges | De Brasília
O engenheiro Mário Veiga, conselheiro informal da presidente Dilma Rousseff no setor elétrico e um dos mais renomados especialistas brasileiros na área, traçou um panorama “alarmante” da situação energética do país, que contraria frontalmente o discurso oficial.
Em relatório reservado, Veiga aponta que, dadas as condições atuais, há um risco de 17,5% de racionamento neste ano, muito acima do limite de 5% que é considerado aceitável na operação do sistema. Ao contrário do que garantem as autoridades, ele vê “deficiências estruturais” na capacidade de abastecimento e adverte sobre a possibilidade de “blecautes sistêmicos”, mesmo que seja vencido o fantasma de um novo racionamento.
Os cálculos de Veiga têm ampla influência no mercado porque a PSR, consultoria fundada e presidida por ele, detém um banco de dados e sistemas que permitem complementar os modelos matemáticos usados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Nos últimos dias, ele e sua equipe se dedicaram a quantificar o risco efetivo de racionamento, e não de “qualquer déficit” de energia. A diferença é importante: pequenos desequilíbrios entre a oferta e a demanda podem ser driblados com medidas pontuais na operação. Um racionamento, que contempla situações com déficit de pelo menos 4%, requer cortes de carga mais rigorosos.
A falta de chuvas e o esvaziamento dos reservatórios, nos meses de janeiro e fevereiro, são minimizados como fatores de incerteza no abastecimento. “Esses sustos vêm ocorrendo desde 2010”, diz um trecho do Energy Report, relatório ao qual o Valor teve acesso. “Se tivéssemos prestado atenção nos mesmos [sustos] e tomado algumas ações de reforço na ocasião, a situação de hoje estaria mais tranquila”, afirma.
Uma das evidências mais preocupantes do suposto desequilíbrio estrutural diz respeito ao volume de energia efetivamente disponível no sistema e à quantidade consumida. Conforme procedimentos de operação, mesmo em momentos de pico do consumo, o sistema deve trabalhar com uma folga de 5% sobre a demanda máxima. Essa margem de segurança é conhecida no jargão do setor como “reserva girante”.
Para se ter uma ideia do que ocorreu em janeiro, quando vários recordes de consumo foram registrados, essa folga na geração chegou a menos de 1% nos dias 29 e 30. “Esse nível extremamente baixo de reserva é alarmante, pois torna o sistema vulnerável a blecautes sistêmicos.”
Essa folga na geração é essencial porque, caso a turbina de uma hidrelétrica, por exemplo, tenha de ser desligada por algum imprevisto, é preciso contar com reposição imediata para atender à demanda. “A operação com baixos níveis de reservas operativas é uma ameaça à confiabilidade de suprimento do sistema”, afirma um trecho destacado do relatório. Ele acrescenta que “situações como a saída intempestiva de geradores ou mesmo variações muito rápidas e significativas da carga podem levar ao desequilíbrio de carga e geração e ao consequente colapso do sistema”.
Procurado pela reportagem, o Ministério de Minas e Energia preferiu não se pronunciar sobre o relatório da PSR e reiterou que o fornecimento de eletricidade está assegurado “em quantidade e qualidade necessárias”. Segundo o ministério, há equilíbrio estrutural entre oferta e demanda.
As opiniões do consultor e do governo já foram mais convergentes. No fim de 2012, Veiga teve papel central na elaboração e apresentação do modelo de renovação das concessões do setor elétrico apresentado pelo governo.
Em seu relatório, Veiga também tenta dar uma resposta definitiva sobre a confiabilidade da rede de transmissão do país. Questionando se o sistema pode ser considerado seguro, ele é taxativo: “Não”. Diferentemente do raciocínio mais comum, os atrasos nas obras de novas linhas ainda não devem ser apontados como razão da fragilidade, segundo a PSR. A análise detalhada de relatórios oficiais sobre dez blecautes de porte significativo, ocorridos entre agosto de 2012 e setembro de 2013, revelou que nove tiveram “falhas em subestações” como origem, tendo sido resultado de “problemas de manutenção e de ações operativas”.
Para medir a confiabilidade do sistema de transmissão, o relatório se baseia no conceito do tempo médio de interrupção de fornecimento de energia, que deve ser inferior a dez minutos. Isso significa que, se todos os apagões ocorridos no país ao longo de 12 meses fossem concentrados em um único evento, a carga total de energia teria de ser interrompida por essa duração. Assim, o indicador tenta contabilizar os efeitos de apagões ocorridos numa pequena área, mostrando de forma clara a dimensão da falta de luz.
Pela cartilha do setor elétrico, um tempo médio de interrupção “de até 21 minutos” é considerado admissível, mas o sistema brasileiro passou a exceder esse limite a partir de 2009. Em 2010, recuou para parâmetros aceitáveis, mas voltou a estourar o teto nos anos seguintes – chegando a mais de 50 minutos em 2012.
Por tudo isso, o relatório descarta a hidrologia desfavorável e a demanda elevada como culpadas pela situação atual. “A vulnerabilidade do sistema elétrico não é conjuntural, isto é, não resulta de condições hidrológicas desfavoráveis nem de um crescimento brusco da demanda. Ela é consequência de deficiências estruturais na capacidade de suprimento.”
Além de apontar outros problemas que considera estruturais (ver tabela), Veiga enfatiza que os riscos de racionamento não constituem uma previsão de que algo inevitável ocorrerá, mas apenas uma fotografia momentânea e seu grau de vulnerabilidade.
“Não se pode confundir risco – que informa a probabilidade dos possíveis resultados antes de São Pedro decidir o quanto vai chover – com realização, que é o resultado específico da escolha de São Pedro”, diz o relatório, que recorre a uma metáfora: “Suponha que uma pessoa decide jogar roleta russa. Um amigo, alarmado, argumenta que isso é muito arriscado, pois há probabilidade de 1/6 de a pessoa morrer. Aí a pessoa aperta o gatilho e, felizmente, não ocorre nada. Isto não significa que a pessoa possa dizer que seu amigo era alarmista, só porque ´deu tudo certo´. Sorte não é mérito, e contar com a sorte, ao invés de fazer um planejamento que garanta o suprimento caso São Pedro esteja de mau humor, é uma estratégia, digamos, arriscada”.