Escravos do ouro: Endividados e isolados, garimpeiros que trabalhavam no Pará foram resgatados em situação análoga à escravidão

Além de patroa, Raimunda também é banco e comércio do local. Ela “guarda” o pagamento dos funcionários (entre 3 e 7% do ouro que extraem) e usa esse crédito para descontar os gastos deles no garimpo.


Todo o controle é mantido por ela, em um famoso caderno que fica na sede e ninguém acessa, apenas ela. A dívida só é revelada quando eles vão embora, momento em que a patroa faz as contas. Os garimpeiros se referem com temor ao momento em que ela “risca o caderno”.

Raimunda criou uma série de regras, atípicas até para os garimpeiros mais rodados, que fazem os trabalhadores gastar dentro do seu garimpo. É proibido trazer comida de fora, compras apenas na sua cantina. É proibido namorar, as relações são intermediadas pelo pagamento de programas. É proibido usar a internet disponível na sede, obrigando quem quer falar com a família a pagar para ir até o local onde há um rádio. Tudo isso vira dívida.

Na hora que ela risca o caderno, alguns devem tanto que não têm saldo nem para sair do local. Era o caso de um trabalhador sentado na beira da estrada que liga a sede à porteira quando o comboio de dez carros entrou na propriedade, na quinta dia 16.

Foi quando os 38 homens e mulheres que trabalhavam ali foram resgatados pelo grupo de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho. Os fiscais consideraram que os 30 garimpeiros e 8 cozinheiras viviam em situação análoga à de escravos. Como o garimpo estava dentro da Floresta Nacional do Amana, a ação foi em parceria com o Icmbio, o Instituto Chico Mendes de Conservação para a Biodiversidade, que interditou as frentes de extração. Participaram também o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Polícia Militar.

Olhando para os lados e muitas vezes sussurrando para falar com a equipe da Repórter Brasil, os trabalhadores só revelaram o esquema ao qual eram submetidos depois que foram retirados dali. Mesmo assim, com medo. “Prefiro viver”, respondeu uma das mulheres quando questionada se o seu nome poderia ser publicado. Respeitando a vontade da maioria, a identidade dos trabalhadores não será revelada.

“Um grande comércio”
Entre as primeiras regras impostas pela proprietária, estava a proibição do namoro. Os relacionamentos monetizados eram permitidos. O valor do programa era anotado por ela no caderno de controle, onde o crédito passava do garimpeiro para a cozinheira. Na hora de acertar as contas, Raimunda cobrava primeiro o que o trabalhador devia a ela. Sobrando, as mulheres recebiam pelos programas.

Havia casais que namoravam na clandestinidade. Se descobertos, ou a mulher era expulsa, ou o casal era separado em frentes de extração distantes.

Alguns trabalhadores relatam que era proibido trazer comida ou bebida de fora, sob o risco de os produtos serem confiscados na revista à qual foram submetidos na portaria. Regra que os obrigava a comprar da venda que fica dentro da casa de Raimunda, onde tudo vale ouro.

Uma garrafa de cachaça sai por uma grama, cerca de R$ 100. Um pacote com 12 latas de cerveja, dois gramas, R$ 200. Os preços na cantina e na farmácia eram de cinco a dez vezes maiores que os da cidade, segundo apuraram os fiscais do trabalho, que encontraram vários itens com a validade vencida. A maioria dos trabalhadores, porém, nem sabia os valores. “A gente pergunta o preço das coisas, ela dá de costas”, diz um garimpeiro.

Equipamentos de trabalho também eram vendidos por preços altos. Segundo um trabalhador, as botas custavam 2,5 gramas (R$ 250). Talvez por isso a maioria deles trabalhava descalça, com as pernas enfiadas na lama, onde muitas vezes cai o mercúrio utilizado para separar o ouro. Entre os resgatados, um senhor tinha os pés e as pernas cobertos de machucados e erupções.

“Quem é doido de mexer com uma diaba daquela?”
A regra que mais gerava indignação era a proibição em usar a internet ou o rádio na sede. Para falar com a família, eles precisavam pagar quatro gramas (R$ 400) para ir e voltar ao ponto onde Raimunda autorizava o uso o rádio.

Uma das mulheres que mais têm experiência em outros garimpos fez uma rica leitura de como Raimunda operava: “Ali todo mundo tem livre arbítrio, ninguém é obrigado a nada. Mas a situação não te deixa outra opção”, ela diz. “É assim. Tu não é obrigada a pagar pra falar com a família, mas a outra opção é andar 30 quilômetros embaixo do sol. Só de ida. Do mesmo modo, ninguém te impõe a prostituição. Mas o gerente fica no teu ouvido toda noite, insistindo. Ele pode te queimar, tu não pode perder a vaga, acaba se submetendo. Mas a mulher é esperta, o cabra gosta, e ela começa a pedir pra ele comprar um monte de coisa, como agrado. O garimpeiro vai pegando da cantina sem nem saber a conta. Pra mim, tudo isso aí é um grande comércio”.

Pior do que trabalhar e gastar tudo no garimpo, é trabalhar e economizar, mas mesmo assim não receber. Foi a situação relatada por um trabalhador que, quando quis sair, não conseguiu receber de Raimunda. No dia do acerto das contas, ele ouviu da proprietária que não havia ouro para lhe pagar. “Ela disse pra voltar pro trabalho, eu voltei”, ele diz.

Por que não contestou? Exigiu o seu pagamento? “Ninguém tem essa força ali, dona”, ele responde, incomodado. “Acho que a senhora ainda não sabe de metade da história. Quem é doido de mexer com uma diaba daquela?”

Raimunda não é bem quista pelos funcionários. Nem mesmo um dos seus empregados de confiança, que trabalha como operador de máquinas, encontrou palavras boas para descrevê-la. Falando com ênfase positiva, como quem faz um elogio, ele disse: “ela é uma mulher dura. Muito dura”.